terça-feira, 28 de julho de 2009

PARA SEMPRE










Vitinho e dona Martinha era o casal mais famoso da rua por suas brigas ao ar livre para toda a galera ver de perto quem mandava no “pedaço” .
Ela nem se lembrava do reumatismo, fazendo verdadeiras acrobacias com o cabo da vassoura no topete encrespado do maridão .
Na verdade não tinham motivos aparentes, pois Vitinho era um pobre homem de sessenta e cinco anos que não abria a boca para nada .E dona Martinha parecia tão dócil com sua expressão de avozinha caridosa, disfarçando toda a ira que guardava dentro de si .
Só que entre eles o bicho “ pegava” de uma tal maneira que até o olhar passivo de Vitinho lhe irritava profundamente .
Dizia que ele era preguiçoso e que nunca gostou de colocar o lixo na rua.Depois não aguava as plantas do quintal e ainda se fazia de surdo todas as vezes que precisava comprar o leite na padaria .
Mas para jogar dominó no meio da praça, era uma beleza ! Quando o primo Bidú batia palmas no portão ele se descabelava todo, colocando o chapéu para sair rapidinho na ponta dos pés .
Ah, este era o pior motivo de todos ; o mais poderoso e cabeludo !
Dona Martinha bufava de raiva porque o serviço da casa sempre sobrava para ela e já não tinha saúde para ficar dando brilho nos móveis.
Queria ver o dia que ficasse doente ...Ai sim seria tarde demais para as suas lamúrias .
Aquele “fanfarrão” só aparecia no finalzinho da tarde, justo no horário da sopa das seis, morto de fome e querendo beliscar o caldo com o miolinho do pão .
E era este tipo de ousadia que deixava dona Martinha louca da vida , resmungando com as panelas .
A vizinhança morria de rir com seus gritos neuróticos, desafiando Vitinho para uma briga .
Ele não tinha vergonha em ficar plantado num banco da praça, jogando conversa fora sem ter ao menos cumprido suas obrigações domésticas e blábláblá !
Depois se fazia de vítima, com o coração partido, dizendo que ele não era mais o mesmo da época da formatura :
- Como você mudou, Vitinho !- enxugava as lágrimas .
“Prefere ficar sassaricando por ai com o primo picareta, só de butuca nas mocinhas assanhadas que passeiam pela praça” .E ela, pobre mulher do lar se acabava no tanque, na pia e no fogão !”
Nisso Vitinho se fazia de surdo como que se nada tivesse acontecendo .
Só que a sopa das seis estava com os dias contados e se quisesse, que fosse preparar .Dona Martinha prometeu aos pés da Santa que passaria a pão e água, mas Vitinho também .Não teria mais um pingo de dó !
Pronto, tava feito a encrenca !
Cada um foi dormir em camas separadas e sem muita prosa.Ele ligou o radinho do quarto para ouvir as notícias enquanto ela fazia crochê embaixo das cobertas, se fingindo de morta .
Ele roncava alto e ela tossia.
Ele pigarreava e ela cantarolava, espiando por rabo de olho.E assim corria tudo bem até que numa manhã de domingo, daquelas que Vitinho estaria de prontidão a espera do primo assanhado , silêncio total .
Dona Martinha fez barulho com os pratos, gritou com o passarinho e fez de tudo para que o companheiro acordasse, mesmo que fosse resmungando, como fazia todos os dias .Mas desta vez, não !
Ela caminhou até a porta do quarto , esticando o pescoço apenas para espiar melhor .Foi quando pode constatar a agonia de Vitinho , gemendo de dor .
Pra quê ! Dona Martinha quase morreu do coração !
Começou a ficar desesperada, andando de lá pra cá, feito louca .Só que era mais um golpe de Vitinho, apenas para lhe chamar a atenção .
Explicava que era uma dor horrível, que vinha de trás para frente, fazendo um bolo aqui e ali ...E ela gemia junto, como que se sentisse o mesmo.
- Meu bebezinho, conta pra sua Martinha onde dói...
- É o peito.Não, acho que é o coração, minha pretinha.
- Quer que eu faça uma massagem de cima pra baixo...
- Só se for de baixo pra cima, minha preciosa.
- Vai mais para o canto, meu querido.
Quando toda a vizinhança conseguiu entrar no quarto, encontrou os dois abraçadinhos na cama, chorando baixinho com muito medo .Medo de se perderem um do outro, porque eram companheiros, namorados e cúmplices de um dia-a-dia maluco, mas que somente os dois conseguiam compreender .
Vitinho pediu um beijo ...Ela lhe ofereceu um café bem quente , do jeitinho que ele mais gostava e tudo foi se ajeitando .Logo mais teria o jogo de dominó na praça, as brigas de dona Martinha, o cabo da vassoura voando longe ...e todo um romance que começou há mais de quarenta anos atrás, onde apenas o amor sincero e verdadeiro consegue unir diversas emoções, fazendo de Vitinho e dona Martinha um casal cada vez mais apaixonado .E com direito a sopinha das seis, é claro .



Silmara Retti

OS OLHOS NÃO MENTEM JAMAIS















Os olhos de uma pessoa refletem de dentro para fora, tudo o que passa no seu interior .Não conseguem disfarçar, enganar ou mentir.E foi diante dos olhos de Jussara que Marinho disse abertamente, escancarando para quem quisesse ouvir:
- Eu nunca te amei. –desabafou.
Era apenas uma moça bonita, inteligente, prendada, mas para ele não passava de uma irmã mais nova, uma tia do interior ou um pé de samambaia. Estava casando-se com ela apenas para não deixar a pobre moça abandonada, com aquele barrigão que cabia muito bem um bebê de sete meses e ainda sobrava espaço para uma macarronada com banana.
Talvez fosse dolorido saber a verdade, assim nua e crua, mas Marinho preferia rasgar o verbo, para que ela não se iludisse.
Antes de juntarem os trapos, a escova de dente e o crediário, ele deixou bem claro que seria tudo pela criança.Jussara assinou embaixo, concordando com cada virgula, mas cheia de “más” intenções.Daquelas de cair a peruca!
Confiava no seu charme e botava a maior fé que com a convivência pintaria um clima romântico.Sabe como é: morando no mesmo teto, dormindo na mesma cama, tirando o mesmo piolho ...BINGO! Marinho estaria no papo .
Jussara armou tudo em secreto.Não que acreditasse que um neném pudesse salvar o seu casamento, mas acreditava piamente que Marinho estava redondamente enganado quando lhe colocou as cartas na mesa daquela maneira impiedosa.Com o tempo mostraria a ele o que na verdade estaria perdendo.
Esperou Maria nascer, sempre na dela, não exigindo nenhum agrado em troca. Dormiam juntos, roncavam juntos e nada mais.
Quando Marinho achou que conhecia Jussara de fio a pavio, ficou pasmo ao perceber que não era somente aquela mulher azarada que engravidou dele e não agradou .Jussara era muito além desta zica do destino, mostrando-se uma Super Mãe ao zelar da pequena Maria como um anjo da guarda.
Marinho se via encantado, só de butuca, no jeito amoroso que ninava a criança em seus braços.E durante o seu tempo livre cuidava da casa e de si mesmo; não tinha como pagar uma academia de ginástica, mas caminhava na praia.Não tinha comprar livros caros, mas freqüentava a Biblioteca do seu bairro.Jussara era inteligente e sabia aproveitar as opções que tinha nas mãos.Fez curso de cabeleireira gratuito na Paróquia, de corte e costura , manicure e até de inglês.
Um dia Marinho havia dito em seus olhos que não lhe amava e com certeza, engoliria cada palavra.E se não fosse, tudo bem.Que vivesse a sua vida!Outros lhe dariam valor porque o mundo não se resumia nos encantos de MA-RI-NHO .
Estava apenas lhe dando uma chance para que lhe conhecesse melhor.O bonitão ficava em cima do muro esperando que Jussara corresse atrás, mas não ela não correu nem atrás e nem na frente!Correu em busca daquilo que acreditava: em si mesma.
Investiu na sua vida profissional e em pouco tempo conseguiu montar o seu próprio negócio: um salãozinho de beleza na garagem de casa. Agora andava com roupa da moda, embonecada, com o cabelo sempre feito e a cabeça também.
Às vezes se encontravam na correria do dia a dia; almoçavam juntos e batiam papo.Jussara falava de tudo um pouco.
Sabia sobre economia, horóscopo, saúde. Sabia também como conquistar, encantar e amarrar um homem como ninguém! Fingia nem ligar para as investidas de Marinho e sua vida profissional estava, junto com Maria, em primeiro lugar.
Que surpresa! Aquela não era a mesma Jussara que conheceu: maravilhosa, dinâmica, nota Mil.
Marinho começou a redescobrir aquela mulher.Queria de volta o que havia perdido, aliás, o que nunca encontrou. Pronto, tudo mudou.Agora era ele que babava em cima de Jussara.
Começou a fazer de tudo para chamar a sua atenção, entrando de sócio no Salão de beleza apenas para dar o bote .Agora eram amigos, companheiros, cúmplices ...
Numa noite, enquanto Jussara contava uma história para Maria dormir percebeu que um homem apaixonado estava lhe observando.Um par de olhos que refletia de dentro para fora tudo que passava no seu interior.
E diante dos olhos de Jussara, Marinho suspirou:
- Eu sempre te amei ...e não sabia.
Não precisou dizer mais nada, lhe cobrindo de beijos. Os olhos não mentem jamais porque não conseguem disfarçar a verdadeira linguagem do AMOR.


Silmara Retti

Olha que ave mais linda





















OLHA QUE AVE MAIS LINDA
MAIS CHEIA DE GRAÇA
É UM PASSARINHO
QUE VEM E QUE PASSA
LIVRE NA MATA,
SÓ QUERENDO VOAR!!!



VEJA O SEU CORPO DOURADO
NO CÉU DE UBATUBA
O SEU DOCE POUSAR
NA CARNAÚBA
FAZ PARTE DA VIDA ...


É SÓ PRESERVAR!

Silmara Retti

O VUDU



















Na boca do povo ciúmes é prova de amor, daquele fulminante, esvoaçaste e ruminante ! Tem que sacudir as tamancas, fazer escândalo, esverdear de raiva ...para depois acabar em pizza .Pizza na cama!
Quanto mais, melhor .Valdete que o diga, pobrezinha! Era um deslumbrado na cola de Jair .
Não comia, não bebia, não vivia , fazendo o maior Cooper atrás do homem amado, o mais charmoso e cheiroso do mundo .Um homem tão chique que até cegava as vistas de quem tentasse encarar o bicho de frente .
Ê Jair, feio que dói ! Mas fazer o quê se debulhava corações com sua boquinha murcha com um dentinho de alho pendurado ? Usava um tapetinho tingido de loiro e tinha um jeito de malandro encantador , fazendo Valdete se esbugalhar em lágrimas de paixão .
O boneco era bicho solto, livre e piriricava em cada boteco com seu bico doce do caramba ! Cantava todas e mamava tudo o que tinha, sempre no gargalho da garrafa, fazendo charminho com os olhos, de lá para cá, a procura de um rabo de saia .Mas Valdete estava na sua lista negra, no banco de reservas, é claro .Só que na falta de qualquer titular poderia se aquecer gostoso nos braços de Jair, que corrias pra galera, fazendo festa .Porém os seus dias de glória estavam contados porque se casaria no próximo mês e a cidade inteira sabia dói seu futuro “enlace matrimonial”, menos ele .
Alguns achavam o máximo :
- É isto mesmo, dá-lhe Jair !
Já outros espiavam desconfiados a rapidez daquele casamento, sem pé e sem cabeça .O casamento de Valdete e Jair . Na verdade eles mal se conheciam, só que a bonitona armou um plano para abocanhar de vez o artista do pedaço .
Seria a mais competente de todas, a melhor das concorrentes, a super escrava, engraxando os seus sapatos, esfregando as suas costelas e se atirando no chão para que pudesse passar por cima .E deu certo!
Como era sozinho no mundo, sem um compromisso sério com ninguém, resolveu arrastar aquela tonta para morar com ele no seu mocó, que pelo menos assim ficaria brilhando as suas custas .
Jair passava a noite na gandaia e aparecia junto com o nascer do sol, todo amassado e cheirando a colônia feminina .
- Safado ! Assim era de matar !
E só sobrava para Valdete o farelo de Jair .O pó tosquiado do seu corpinho abatido de tanto ciscar em outro galinheiro .E Valdete se dizia roxa de ciúmes, rasgando sua camisa ao meio .
Mas nenhum e nem o outro largava o osso .Ele por precisar dos seus préstimos de domésticas e ela por precisar do seu amor .AMOR de patrão .
As pessoas admiravam tamanha devoção, medida por seu ciúmes infernal .
Que ciúmes era aquele, meu DEUS ! Acho mesmo que isto tinha outro nome : palhaçada .Falta de respeito consigo mesma .
Valdete nunca olhou no espelho e se deu aquele valor.
Lógico, nem tinha tempo para tanto !
Mal conseguia pendurar um grampo no cucoruco, porque passava a manhã inteira procurando nos bolsos de Jair bilhetinhos de amor, endereço de alguma perua , alguma foto ...E achou, justamente uma foto da perua com o seu Peru .
Que ódio de Jair ! Valdete pensou em se matar, se pendurar de cabeça para baixo no poste, de se enterrar viva ...Ainda mais que era uma fulaninha sem classe ; que não chegava aos pés dourados do bonitão .Só podia ser macumba !
A primeira coisa que pensou foi em procurar um Pai de Santo para desfazer aquele trabalho ridículo ...Já estava saindo de casa com uma galinha preta debaixo do sovaco, quando resolveu ir até a penteadeira para pegar um “santinho” protetor e deu de cara com sua cara .Parou um minuto e não reconheceu ali a velha Valdete de antes .
Credo, parecia uma bruxa .
Relaxada, desmazelada,acabada ! Na verdade era um pano e chão .Puxou o banquinho, pasma de terror e foi, pouco a pouco, caindo para trás .
Jair miserável ! Olha só o que aquele traste havia feito com ela ...Mas Jair só fez o que ela o permitiu fazer .Nenhum homem merece ser o causador deste tipo de destruição e ponto final .
Quem tava amarrada, era ela .Porque quem gosta da gente é a gente mesmo .E se algum vudu disser o contrário, é urucubaca das bravas .
Que Pai de Santo, que nada ! Valdete rodou a sua própria baiana, jogou um sal grosso na foto do falecido e agora Jair teve que cantar pra subir ... e sumir ! Sem choro e sem vela .
Deixou o terreiro limpo e aberto para que Valdete pudesse semear a sua auto- estima e colher os frutos de um novo amor .O amor próprio !

Silmara Retti

O tom da mata




















QUE TOM É ESTE
QUE DA MATA NASCE E CRESCE
COLORINDO A NATUREZA
DESDE O DIA EM QUE AMANHECE?


QUE TOM É ESTE
QUE DA MATA RESSURGE E CRIA
TRANSBORDANDO RIOS E LAGOS
E O PEITO DE ALEGRIA?


É O TOM DA FAUNA E DA FLORA
DESEJANDO UM BOM DIA
COM O RAIAR DE UMA NOVA AURORA
RIMANDO COM A MELODIA ...


CANTA PÁSSARO, CANTA ÁRVORE
CONTA LENDA QUE ENCANTA
QUE CHORA EM GOTAS DE ORVALHO
E UMIDECE A ALMA DA PLANTA!
ATÉ QUANDO VAI TER BICHO
CORRENDO DE LÁ PRA CÁ
A PROCURA DE SEU DONO,
ÚM ÍNDIO DA TRIBO AVÁ!



MENINO LIVRE FEITO VENTO
ASTUTO DE GRANDE BELEZA
SABE QUE O TOM DA MATA
É A SUA MAIOR RIQUEZA


RESPEITA O NOSSO PLANETA
PRESERVANDO O MEIO AMBIENTE
PORQUE ACREDITA QUE O FUTURO
PRECISA PLANTAR, É UMA SEMENTE!


EM TERRA FÉRTIL, BEM MOLHADA
POR CARINHO E CONSCIENTIZAÇÃO
GERMINANDO A VIDA SAGRADA
DO FUNDO DO CORAÇÃO .



SILMARA TORRES RETTI

O TEMPLO DA VIDA









Quando Deus planejou o corpinho pomposo de Roberto, perfeito nas curvas e resistente no conteúdo, ele não imaginou que estaria ganhando de brinde a liberdade de fazer daquele corpo o que bem quisesse .
Cada centímetro deveria ser cuidado com zelo e responsabilidade, porque um dia prestaria contas daquele material recebido.
Todas as regras foram explicadas e o Criador lhe alertou que poderia aproveitar os prazeres do mundo e curtir a vida numa boa, mas sempre com muito respeito.Respeito pelos outros e principalmente por si mesmo, porque aquela massa muscular lhe acompanharia desde a infância até a velhice.
Um corpo não é apenas um pacote rechonchudo, ás vezes enfeitado, bonito e vistoso.Ou então envelhecido num canto qualquer, colocado de lado, como se não tivesse mais nenhum valor.
Todo corpo emana energia, aprisiona emoções e absorve a essência da vida, fazendo dele uma porta aberta para o Universo.A saúde do mundo nasce daqueles que “fazem AMOR”, multiplicando bondade e sorrisos eternos. A alma é um poema e o corpo, um livro com uma capa especial, que envolve todas as rimas.
Então Roberto se injuriou deste papo furado e quis logo nascer com a pose típica de um verdadeiro REI. Acreditava que o Criador havia exagerando no seu discurso cafona.Os tempos mudaram e ele queria mesmo ir para a galera!
Roberto foi mimado e tinha tudo o que bem queria, sambando na cabeça da família inteira com a boca no trombone:
- Quero colo! Quero dinheiro! Quero farra!- ordenava.Cresceu se achando o Poderoso Chefão, rodeado por mulheres que se diziam apaixonadas.Comia qualquer porcaria e “mamava” em todos os gargalhos.Abusava do sexo, das drogas e da malandragem, sem um pingo de pudor. E assim ia levando e sendo levado...
Não pensava na própria velhice e nem se lembrava que um dia deveria prestar contas ao Criador.
Quando Eles voltassem a conversar, Roberto não mostraria suas bagagens, simplesmente porque não as tinha.Havia levado uma vida fútil e vazia. E o muito que achou ter conquistado, seria pouco diante da Eternidade.Roberto nasceu, cresceu e envelheceu como qualquer mortal e já no bico do urubu, com sua cara de pau definhada, partiu para o outro lado, sem lenço ou documento.
Apenas carregava na lembrança uma vida preenchida por prazeres banais.E diante do Criador, haveriam de fazer o balanço do que foi lhe ofertado e do que estaria devolvendo.
Aquele pobre homem não tinha palavras para se desculpar, abaixando os olhos com muita vergonha por ter sido um proprietário relapso.E debruçado no colo do Pai Amoroso, chorou copiosamente feito um menino travesso.Eram lágrimas de arrependimento por demorar a compreender que o nosso corpo é o templo da criação e precisa de cuidados e muito respeito.Nós temos o compromisso de participar da história da Humanidade com sabedoria, garantindo para nós mesmos uma consciência tranqüila e merecedora de um final feliz!



Silmara Retti

segunda-feira, 13 de julho de 2009

O sonho de JOBIM












Para o final do ano não faltava quase nada. As horas voavam e o tempo passava a galope, num piscar de olhos.
Quando viu, já foi! Então dona Celeste tricotava com a língua uma festa de cair a peruca , arrebentar a boca do balão e a conta bancária, é claro ! Mas para dona Celeste uma “fortuna” era apenas um detalhe bobo.
Sempre foi a Rainha do Dindim e nadava em dinheiro, chique como quê, esnobando o seu patrimônio “dourado” para quem quisesse ver . Mulher de fino trato esta “doninha” .
Decorou cada peça do seu armário , sabia de cor os sapatos de luxo e as jóias que guardava no cofre .
Rica, boba e aparecida.
Um espetáculo de madame; criava o sobrinho como que se fosse a própria mãe dele, ingressando o “boneco” no mundo reluzente da sociedade grã-fina.
Só que Jobim era apagado por dentro; triste e amarrado pelo desejo da tia rica. Como sofria o coitado! Não tinha boca pra nada, sendo exibido de lá para cá como se fosse o seu maior investimento.
Estudava até de madrugada, praticava esportes da moda e se acabava no piano.E a galera aplaudia de pé, dando uma força para que Jobim se sentisse o show do século.
Sem perguntar nada para o moleque, resolveram por conta própria promover uma tarde beneficente para presentear as criança de uma favela qualquer, sob a mira de um jornalista emocionado que com certeza estaria por perto registrando tudo.
- Jobim , fala francês, fala ...Jobim, vai para o piano, vai.Jobim, toca aquela sinfonia ...
E lá ia o pobre menino, que na verdade se corroia por dentro, murcho de dar dó .
Nunca gostou de francês.Piano lhe dava enjôo.Mas ele não tinha escapatória, porque a titia rica lhe puxava pela coleira, impondo os próprios desejos, só para se aparecer as custas do moleque .
Aliás, moleque ele nem podia ser.Parecia mais um criado mudo ambulante.
Se tentasse suspirar alto, era comido pelos olhos de dona Celeste que vigiava todos os seus passos.
Que idéia maravilhosa: uma tarde dedicada aos pobres arrancaria baldes de lágrimas e Jobim já estava convocado para cuidar da parte musical , colocando em prática o que aprendeu num curso intensivo, “daqueles” que odiava profundamente !
Para ele tudo aquilo era um sacrifício enorme e fazia com muita má vontade.Sempre estava de cara feia, bufando de raiva, quietinho num canto para que ninguém desconfiasse.
Mas seria impossível não perceber que Jobim estava de “bico.Só que ninguém se importava com o “bico ridículo de Jobim ”.
- Antes de casar, sara! - riam pelos cantos.
Dona Celeste estava tão deslumbrada com a idéia que passou por cima dos sentimentos de Jobim, feito um trator desgovernado .
Na sua cabecinha de codorna, um moleque não tinha querer.Não tinha vontades e nem sonhos.Era apenas um boneco “amestrado” que andava com as pernas da tia.Pronto, tudo foi marcado na agendinha florida de dona Celeste e o evento seria um sucesso, matando as colegas de pura inveja por seu desprendimento e da sua generosidade de “araque”.
Mas as coisas não conseguiam dar certo.Lógico, com Jobim infeliz, mal humorado, de “zica, só podia dar “furo” mesmo !
Quando a gente faz sem vontade de fazer, é infelicidade na certa .
A maior surpresa do evento seria Jobim, que cansado de tanta opressão, estava mesmo afim de dar o seu grito de liberdade .
Esperou que toda a grã finada se reunisse para que fossem acertados os últimos detalhes e sumiu do mapa .
- Justo agora! Que desacato! Que decepção !
Bola para frente .Com Jobim ou sem Jobim, o evento seria um grande sucesso.
Na verdade Jobim não era nada, apenas o sobrinho abobalhado de dona Celeste .Uma sombra opaca!
Lá se foram com os pacotes de presentes numa euforia doida.Todos estavam engomados, perfumados, emocionados ...
Discurso daqui e dali .Fotos e mais fotos!
Faziam fila indiana para receber seus pacotes de Natal . Só que de repente eis que surge um palhaço vindo do nada, fazendo piruetas e caindo no chão. Foi uma festa e a criançada não parava mais de rir .
Ninguém sabia donde tinha vindo aquele palhaço tão engraçado, com sua cara de lua toda pintada, arrancando a atenção da galera num piscar de olhos. Dona Celeste delirava de tanto rir com suas travessuras, muito mais empolgada do que qualquer criança .E quando aquele palhaço caminhou em sua direção lhe oferecendo uma flor, pode perceber atrás da maquiagem colorida os olhos vivos de Jobim, cheios de lágrimas, mas lágrimas de alegria, de emoção, de liberdade.Estava dando o melhor de si para fazer o que realmente gostava ; ser feliz !
E somente assim conseguiria fazer os outros felizes também, realizando o seu próprio sonho que merecia respeito !

Silmara Retti

domingo, 12 de julho de 2009

Santo de Casa não faz milagres!





















Sabe aquele papo furado de beira de boteco, que o palhaço já mamado, esnoba a peladona da Playboy, como se ela fosse a sua amada amante? Pois é . Geraldino estava ali na roda, petiscando uma moela de frango enquanto contava vantagem , dizendo que eram duas, três e até cinco mulheres por noite! E olha que nunca precisou de nenhum tempero extra, hei. Nada de ovo de codorna ou qualquer urucubaca do gênero.
Então os camaradas arregalavam os olhos e queriam saber detalhes do ocorrido.E a cunhada? Também já foi pro saco.E a vizinha da frente? Virou freguesa de carteirinha.Nisso a galera delirava, acreditando que Geraldino era um esfomeado e que não perdoava nem a galinha de estimação.
Mas o que Zenaide achava desta gula toda, hein? Opa, deixa a dona Zenaide fora disto. Era a sua patroa, mãe de seus filhos e devota de Padre Cícero.Rezava dia e noite, pedindo pra chover ou para fazer sol, para crescer o bolo e até para que Geraldino ficasse bem longe da cama de casal. Será que ela não gostava daquilo? Eeeeê! Era uma mulher de muito respeito e aquilo não fazia parte de sua vida.Tinha dor de cabeça quase sempre, dormindo com uma calça de brim só para evitar as perturbações. Não eram marido e mulher? Não.Zenaide não era uma mulher, não senhor.Era uma Santa! E com Santa não se brinca, não se toca e não se peca.
Quando a galera começava a perturbar Geraldino com tantas perguntas indiscretas, ele mandava pendurar a conta, fazendo muita força para conseguir chegar em casa e dar de cara com a cara peluda de Zenaide.E que Zenaide, hein.Parecia um armário embutido, com um chumacinho de cabelo amarrado charmosamente por um barbante velho.Pra encarar mesmo, só tomando uma; uma dúzia de cachaça.
Ao ver Geraldino, mais que depressa corria para o tanque, se fazendo de ocupada. Será que aquela pedra de gelo ambulante nunca foi chegada na coisa? Olha só, a imaculada da dona Zenaide não gostava de sexo.Adorava! Era louca para fazer um mexidinho, só que no capricho.Ela queria com direito a beijinho na boca, bituquinha no dedão do pé, cócegas na dobrinha das banhas...Tudo feito com muito carinho, é claro.E assim o sabe-tudo do Geraldino não sabia fazer.Mulher precisa de dengo, carinho e chamego.Não existe mulher fria.Zenaide, de fora para dentro, e de dentro para fora, era a típica mal amada.Sempre bufando, de cara amarrada e com raiva do mundo.E o que faltava para que fosse feliz? Uma boa acordada, daquelas de rachar o teto.Só que Geraldino era poderoso para os outros, porque dentro da própria casa aquele Santo picareta não fazia milagre.
Do lado direito da cama estava Zenaide, murchinha da silva, e do esquerdo, Geraldino, de trombeta amarrada. A cumplicidade na vida do casal é tudo e se não houver amizade, lealdade e companheirismo, baú-bau, já era!
Enquanto Geraldino contava vantagens de bar em bar, a pobre Zenaide passava mal pelos cantos da casa, se consumindo aos poucos com seus desejos reprimidos.Tinha pressão alta, diabetes, artrite, frescurite...Era uma morta viva com dores até no branco do olho. Então ela resolveu tomar a iniciativa e fazer uma surpresinha para o garanhão do pedaço.
Naquela noite, quando Geraldino voltou da rua, não encontrou a mulher nem na pia , nem no fogão.Procura daqui e dali.De repente lá estava ela toda embonecada na cama, vestindo apenas uma camisolinha transparente, pronta para servir o jantar.
Geraldino achou que estivesse tendo uma visão.A Santa Zenaide pirou! Tava toda descabelada, feito um gorila no cio. Queria sexo? Não só isto.Queria sentir-se amada.
E tirando um chicote debaixo do colchão, ordenou que o indefeso do marido fizesse as honras da casa.
-Senta. Dança.Late! – rosnava com os dentes trincados.
Você pensa que Geraldino negou fogo? Que nada.Uma mulher assim; poderosa, decidida e endiabrada merece mesmo uma refeição vitaminada, pois na cama tudo acaba em pizza, feita com muito carinho e regada com um tempero todo especial.

Silmara Retti

ROXA DE CIÚMES




















Na boca do povo ciúmes é prova de amor, daquele fulminante, esvoaçaste e ruminante ! Tem que sacudir as tamancas, fazer escândalo, esverdear de raiva ...para depois acabar em pizza .Pizza na cama!
Quanto mais, melhor .Valdete que o diga, pobrezinha! Era um deslumbrado na cola de Jair .
Não comia, não bebia, não vivia , fazendo o maior Cooper atrás do homem amado, o mais charmoso e cheiroso do mundo .Um homem tão chique que até cegava as vistas de quem tentasse encarar o bicho de frente .
Ê Jair, feio que dói ! Mas fazer o quê se debulhava corações com sua boquinha murcha com um dentinho de alho pendurado ? Usava um tapetinho tingido de loiro e tinha um jeito de malandro encantador , fazendo Valdete se esbugalhar em lágrimas de paixão .
O boneco era bicho solto, livre e piriricava em cada boteco com seu bico doce do caramba ! Cantava todas e mamava tudo o que tinha, sempre no gargalho da garrafa, fazendo charminho com os olhos, de lá para cá, a procura de um rabo de saia .Mas Valdete estava na sua lista negra, no banco de reservas, é claro .Só que na falta de qualquer titular poderia se aquecer gostoso nos braços de Jair, que corrias pra galera, fazendo festa .Porém os seus dias de glória estavam contados porque se casaria no próximo mês e a cidade inteira sabia dói seu futuro “enlace matrimonial”, menos ele .
Alguns achavam o máximo :
- É isto mesmo, dá-lhe Jair !
Já outros espiavam desconfiados a rapidez daquele casamento, sem pé e sem cabeça .O casamento de Valdete e Jair . Na verdade eles mal se conheciam, só que a bonitona armou um plano para abocanhar de vez o artista do pedaço .
Seria a mais competente de todas, a melhor das concorrentes, a super escrava, engraxando os seus sapatos, esfregando as suas costelas e se atirando no chão para que pudesse passar por cima .E deu certo!
Como era sozinho no mundo, sem um compromisso sério com ninguém, resolveu arrastar aquela tonta para morar com ele no seu mocó, que pelo menos assim ficaria brilhando as suas custas .
Jair passava a noite na gandaia e aparecia junto com o nascer do sol, todo amassado e cheirando a colônia feminina .
- Safado ! Assim era de matar !
E só sobrava para Valdete o farelo de Jair .O pó tosquiado do seu corpinho abatido de tanto ciscar em outro galinheiro .E Valdete se dizia roxa de ciúmes, rasgando sua camisa ao meio .
Mas nenhum e nem o outro largava o osso .Ele por precisar dos seus préstimos de domésticas e ela por precisar do seu amor .AMOR de patrão .
As pessoas admiravam tamanha devoção, medida por seu ciúmes infernal .
Que ciúmes era aquele, meu DEUS ! Acho mesmo que isto tinha outro nome : palhaçada .Falta de respeito consigo mesma .
Valdete nunca olhou no espelho e se deu aquele valor.
Lógico, nem tinha tempo para tanto !
Mal conseguia pendurar um grampo no cucoruco, porque passava a manhã inteira procurando nos bolsos de Jair bilhetinhos de amor, endereço de alguma perua , alguma foto ...E achou, justamente uma foto da perua com o seu Peru .
Que ódio de Jair ! Valdete pensou em se matar, se pendurar de cabeça para baixo no poste, de se enterrar viva ...Ainda mais que era uma fulaninha sem classe ; que não chegava aos pés dourados do bonitão .Só podia ser macumba !
A primeira coisa que pensou foi em procurar um Pai de Santo para desfazer aquele trabalho ridículo ...Já estava saindo de casa com uma galinha preta debaixo do sovaco, quando resolveu ir até a penteadeira para pegar um “santinho” protetor e deu de cara com sua cara .Parou um minuto e não reconheceu ali a velha Valdete de antes .
Credo, parecia uma bruxa .
Relaxada, desmazelada,acabada ! Na verdade era um pano e chão .Puxou o banquinho, pasma de terror e foi, pouco a pouco, caindo para trás .
Jair miserável ! Olha só o que aquele traste havia feito com ela ...Mas Jair só fez o que ela o permitiu fazer .Nenhum homem merece ser o causador deste tipo de destruição e ponto final .
Quem tava amarrada, era ela .Porque quem gosta da gente é a gente mesmo .E se algum vudu disser o contrário, é urucubaca das bravas .
Que Pai de Santo, que nada ! Valdete rodou a sua própria baiana, jogou um sal grosso na foto do falecido e agora Jair teve que cantar pra subir ... e sumir ! Sem choro e sem vela .Deixou o terreiro limpo e aberto para que Valdete pudesse semear a sua auto- estima e colher os frutos de um novo amor .O amor próprio !

Silmara Retti

O queridinho do Chefão

















Quando Seu Maurinho perambulava pelos corredores do escritório com sua pose sacrossanta de deus do Trovão, trincava a carcaça de qualquer um e até a samambaia do xaxim pedia licença, só para sair de cena .
Eita homem complicado, sem papas na língua e de mal com a vida !
Rico por natureza e pé no saco por opção, era o chefe que todo o mundo queria bem longe dali, de binóculos , algemado e amordaçado apenas para não meter o pitaco no trabalho dos outros .
Era o primeiro a chegar e o ultimo a apagar as luzes...cheirando o ambiente a procura de um deslize qualquer , de um único motivo para dar aquele CRAUS gostosinho .O mais odiado, o mais ridículo e o mais paparicado de todos , porque ninguém tinha a audácia de lhe dizer na cara que sua boca cheirava urubu com batatas, que seu cabelo parecia um miojo aguado e que não passava de um pão de queijo gigante .
Ninguém lhe dizia um quilo de verdades e quando Seu Maurinho virava as costas, se borravam de puro medo .
Mas o frescão nem se incomodava com os tititis que zumbiam ao seu redor .Banana para eles !
Todo chefe é assim: BOBO .
Só que na vida uns nascem para mandar e outros para obedecer .Não tinha culpa se era um homem rico, culto e extremamente poderoso .Alguém tinha que dar as ordens naquela mufunfa e por azar no destino, ainda era ele o manda-chuva do pedaço .
Amigos nunca teve .Se tivesse talvez não cairia na indecência de usar terno de crochê com gravatas de bolinhas .Mulher, só a mãe e ainda assim sumiu do mapa .
Dizem até que ele era donzelo, mocinho e cheio de pudores .
Então só de birra descontava seus traumas de encalhado no corredor do escritório fazendo tremer o teto .
Seu Maurinho sabia que queriam lhe arrancar o couro e se fazia de morto .Sempre foi um homem sozinho, sem ninguém e somente assim se sentia vivo , forte e temido entre os mortais .
Talvez se algum dia não comentassem sobre ele, ficaria até doente .Ai sim seria a hora de pendurar as chuteiras .
Dona Nica já lhe passou uma cantada, Dona Luiza se mordia toda só de ouvir a sua respiração ...mas ele era duro na queda e se fazia de difícil .
Decerto não queria perder a virgindade com uma velha qualquer, se guardando para um grande AMOR . Porém os seus dias de reinado estavam por um fio .
Bozolino era o novo funcionário do escritório e não tinha medo de nada , aliás, achava que o chefão era um Zé Mané do caramba e só queria se aparecer .
Nem dava pelotas para o bruxo brega e ia trampar com bermudinha de surfista dando altas gargalhadas com a roupa de gala do patrão ca-fo-ne-te .
Tava para nascer quem tapasse a boca daquele descarado que não tinha um pingo de respeito .
Seu Maurinho era corintiano roxo . Até as pedras sabiam e Bozolino fazia questão em aparecer vestindo o uniforme do Palmeiras.Seu Maurinho sempre foi vegetariano e Bozolino improvisava uma churrasqueira na área de serviço, só para tostar uma lingüiça esperta .
Tá louco, o chefão olhava tudo por rabo de olho , mostrando os dentes irado e depois sumia atrás da pilha de documentos .Ele sim tinha medo de Bozolino e abaixava a cabeça todas as vezes que o moleque lhe encarava de frente .
Mas um dia o barraco desmoronou e foi o maior forrobodó do mundo quando Seu Maurinho atravessou o corredor feito um raio .
Desta vez Bozolino dançaria miudinho sobre as próprias tamancas . Ele havia pegado aquele descarado dormindo dentro do banheiro em horário de serviço, com gorro, cobertor e meias de tricô .
- Eu te mato, Bozolino !
O escritório todo pagava pra ver, trepados nas muretas da sala , apesar que o moleque jogava dominó no canto da mesa . Não mexeu nem o branco do olho , nem se incomodando para não perder a concentração no jogo : parecia que tava macumbado !
De repente foi convidado num urro de guerra a comparecer no reduto do patrão .Pronto, agora Bozolino tava frito !
Fechou a porta da sala e silêncio total .Nem um piu no congá ...Era só um cochicho daqui e um sussurro dali .
Foi quando Seu Maurinho começou a gritar e Bozolino gritava também ...Cada vez mais alto .
- Acodee ! Acho que tão se pegando .
A galera do escritório invadiu a área com tudo e meteram o pé na porta, encontrando Seu Maurinho todo descabelado em cima da mesa , gritando :
- Truco !
Enquanto Bozolino palitava os dentes comendo batatinhas em conserva .Daquele dia em diante foi só alegria : de manhã jogavam baralho, na hora do almoço o dominó e de madrugada Seu Maurinho se empolgava com o jogo da velha .A velha louca , com Bozolino .
Agora o patrão assobiava alto com sua bermuda frouxa , chinelos de dedos e com a camisa nova do Palmeiras , virando a casaca em dois tempos .
Mudou de estilo, de jeito e de vida .Dizem as más línguas que estava apaixonado .Não interessava por quem; segredinhos de Maurinho .
Bozolino ria para o vento, deitado na cadeira do poderoso chefão, lendo gibi , espremendo as espinhas do rosto e crente que não existe Fera Ferida, porque todo bicho indomável esconde lá no fundinho uma bicha mansa, carente e prontinha para dar aquele BOTE !

Silmara Retti

O presente de DEUS


















Existe um lugar no céu colorido por um arco-íris e perfumado por canteiros de camélias, onde alguns anjos perambulam de lá para cá.Não tocam harpa o tempo todo, porque isto é coisa do passado, quando ainda jogavam baralho só para matar o tempo.
O anjo Lilico se cansou de tanto descansar, achando até que no andar debaixo as coisas eram mais divertidas.
Então ele resolveu ocupar o tempo colaborando com Deus, apenas para não se sentir inútil e injuriado com tamanha monotonia.Agora a história era outra e Lilico tem suas tarefas, pois o trabalho educa, eleva e também constrói.
Naquela madrugada ele estava de plantão e quase se descabelou ao buscar a perfeição das cores para que pudesse oferecer o raiar de um novo dia iluminado, feito um show de luzes .Vira daqui, remexe dali e pronto; lá estava o sol nascendo junto com a beleza de suas nuvens, formando o desenho de um elefantinho só para alegrar a molecada.
Ele mesmo se aplaudiu de pé, orgulhoso por sua capacidade profissional de transformar qualquer cenário artístico num cartão-postal com jeito de Paraíso.Mas naquele dia poucas pessoas se deram ao luxo de olhar para o céu e se ele colocasse uma jaca podre no lugar do sol, ninguém perceberia a diferença.
E ai Lilico desmoronou; o seu trabalho glorioso não tinha mais nenhum valor para a humanidade.Não dava lucro e nem ibope.Qualquer um poderia apreciar este espetáculo debruçado na própria janela, absorvendo para si todas as energias da Vida, sem pagar nenhum ingresso por isto.Lilico resolveu dar uma volta e bater uma perninha, apenas para ficar sabendo do comentário do povão.
Foi quando caiu com tudo no quarto de Seu Dimas que ainda dormia ao lado da patroa.Ficou de butuca esperando que acordasse:
- Ufa, quase dez horas da manhã ...Que desperdício!- pensou Lilico - Ele é um homem da roça e com certeza quando der de cara com aquele sol maravilhoso, vai pular de alegria por saber que a natureza se multiplica assim! Só que nada disso aconteceu e Seu Dimas virou de lado, reclamando do tempo:
- Que coisa, tanto calor assim é de torrar os cabelos! Ninguém merece.
Sinceramente, Lilico não agradou.Tudo bem.Se não gostasse do sol, no outro dia produziria numa chuva bem poderosa e BUMM! .Dito e feito.Lilico caprichou na produção, apenas para fazer uma graça para Seu Dimas.Tinha efeito sonoro, raio pra todo lado e “ toneladas” de água, porém o homem tornou a reclamar, cobrindo a cabeça com o travesseiro:
- Tanta chuva assim só serve pra inundar o mundo! Que porre!
Lilico não entendeu nada.Não conseguia agradar as pessoas.Estavam todas insatisfeitas e o culpado de tudo ...era o TEMPO !
Não percebiam que o tempo é apenas um cenário para a luta cotidiana, uma fonte de energia para o nosso corpo e principalmente para a alma.
Abaixou os olhos entristecidos e antes de partir, cochichou no ouvido de Seu Dimas:
- Eu procurei fazer o meu melhor.Enquanto você dorme todas as noites, a natureza não descansa e se multiplica, se amplia e constrói paisagens, colorindo um mundo novo que estará brilhando logo cedo diante de seus olhos.São plantas que nascem, aves que voam e crianças que chegam, trazendo com elas a esperança de um recomeço.O Dia é apenas um caminho que nos levará ao Infinito, levando todos os nossos sonhos e com certeza as nossas realizações.Receba o seu Dia como um presente de Deus, mesmo que tenha um sol escaldante ou uma chuva sem fim. Porque este dia é capaz de despertar alegrias para todos que amamos e principalmente para nós mesmos.O importante não é apenas ter um bom -dia.O importante é fazer um bom dia para alguém.
Assim Lilico acariciou a face de Seu Dimas, indo embora na pontinha dos pés para não acordar ninguém.
De repente ele abriu os olhos sorrindo e lhe acenou agradecido, como se estivesse sonhado .
- Ah, que sonho maravilhoso, até parece que um anjo passou por aqui... - sussurrou consigo mesmo.Hoje vão ser um dia dos “bão”.Quero aproveitar até a última horinha...Ê belezura, sô!
Seu Dimas pulou da cama todo faceiro, cantarolando uma velha canção.Colocou as botinas de couro, lavou o rosto com água fresca e foi o primeiro a sentar-se na mesa parta tomar o café da manhã, preparado com muito carinho pela “patroa”.
O dia estava apenas começando e com certeza seria o melhor de todos, porque aprendeu a recomeçar intensamente cada instante como se fosse o único e sagrado nesta jornada evolutiva que se chama VIDA.

Silmara Retti

O Presente da Mamãe





















Nem bem clareou o dia, Joana martelava na cabeça do maridão, dizendo que aquele domingo deveria ser especial: o mais encrementado de todos. Justamente porque se tratava do Dia das MÃES , marcado e sacramentado no calendário da sala por um circulo vermelho para que ninguém esquecesse do frango assado e do presentinho no capricho .
Teria que ser o almoço do Século, com toda a família reunida, álbum de fotografias passando de mão em mão e histórias antigas da época do dinossauro .
A avó Etelvina estaria no canto da mesa junto com tia Leonor e a galera da terceira idade, só esperando o momento certo de desenterrar o passado do fundo do baú .
No Dia das Mães valia tudo: Miltinho que nunca se deu com Emílio, Joana que aproveitava a oportunidade para colocar as fofocas em dia , Isabel que metia o pitaco na vida alheia ...
Afinidades talvez não tivessem mais nenhuma, apenas um sentimento de obrigatoriedade que faziam estar presentes ...com presente .
Joana gastou tudo o que tinha e o que não tinha para fazer bonito.Embonecou-se no maior luxo, decorando cada frase de amor que pudesse resumir o significado da palavra mãe em sua vida.Porém como nunca se entenderam , um pacote enfeitado falaria muito mais do que qualquer discurso .Tava tudo combinado: enquanto Emílio se bronzearia na churrasqueira, Joana deixaria a mesa posta com a maionese e a farofa, o pãozinho torrado e um sambinha de fundo .E foi exatamente assim ...
O almoço foi maravilhoso , apesar dos assuntos serem os mesmos do ano passado:
- a reforma da casa, o consórcio do carro, a compra do terreno em Santos ...
Lá se foi mais um domingo do Dia das Mães e de madrugada, enquanto Emílio tentava dormir sossegado, começou a lembrar-se daquele tradicional almoço com toda a sua família reunida.Lembrou-se da infância simples, da sua mãezinha humilde , do arroz com feijão feito com muito carinho e de repente lhe caiu a ficha :
- Dona Jacira não estava mais entre eles .Há quanto tempo, meu Deus !Desde que ele, ainda jovem, havia discutido em casa e ido embora dali , se remoendo de tanta mágoa .Aonde estaria aquela mulher forte, que sendo pai e mãe ao mesmo tempo, conseguiu lhe dar o melhor de si ...Ela não estava no tão glorioso almoço do Dia das Mães, porque talvez nem soubesse mais que era o seu dia .
Emílio não conseguiu dormir e sem dizer uma palavra a ninguém deixou um bilhete na cabeceira da cama de Joana, explicando-lhe que não tinha mais sentido passar o segundo, terceiro ou quarto domingo do mês longe de sua mãe .
Foi quando dona Jacira, com muita dificuldade, ouviu passos no quintal, abrindo a janela da rua para enxergar melhor .Assim pode ver de perto o rostinho de menino de Emílio, voltando para seu colo como que se nunca houvesse partido daquela casa .
O seu coração ficou em festa porque aquele era o momento mais esperado de sua vida ; um Dia das Mães atrasado, porém comemorado com muita emoção junto ao seu melhor presente .
Silmara Torres Retti

Mistériossssss!

sexta-feira, 10 de julho de 2009

VC deixou uma msg pra mim?

E TUDO MUDOU










E tudo mudou..

O rouge virou blush
O pó-de-arroz virou pó-compacto

O brilho virou gloss
O rímel virou máscara incolor
A Lycra virou stretch
Anabela virou plataforma
O corpete virou porta-seios
Que virou sutiã
Que virou lib
Que virou silicone

A peruca virou aplique, interlace, megahair, alongamento
A escova virou chapinha
'Problemas de moça' viraram TPM
Confete virou MM

A crise de nervos virou estresse
A chita virou viscose.
A purpurina virou gliter
A brilhantina virou mousse

Os halteres viraram bomba
A ergométrica virou spinning
A tanga virou fio dental
E o fio dental virou anti-séptico bucal

Ninguém mais vê...

Ping-Pong virou Babaloo
O a-la-carte virou self-service

A tristeza, depressão
O espaguete virou Miojo pronto
A paquera virou pegação
A gafieira virou dança de salão

O que era praça virou shopping
A areia virou ringue
A caneta virou teclado
O long play virou CD

A fita de vídeo é DVD
O CD já é MP3
É um filho onde éramos seis
O álbum de fotos agora é mostrado por email

O namoro agora é virtual
A cantada virou torpedo
E do 'não' não se tem medo
O break virou street

O samba, pagode
O carnaval de rua virou Sapucaí
O folclore brasileiro, halloween
O piano agora é teclado, também

O forró de sanfona ficou eletrônico
Fortificante não é mais Biotônico
Bicicleta virou Bis
Polícia e ladrão virou counter strike

Folhetins são novelas de TV
Fauna e flora a desaparecer
Lobato virou Paulo Coelho
Caetano virou um chato

Chico sumiu da FM e TV
Baby se converteu
RPM desapareceu
Elis ressuscitou em Maria Rita?
Gal virou fênix
Raul e Renato,
Cássia e Cazuza,
Lennon e Elvis,
Todos anjos
Agora só tocam lira...

A AIDS virou gripe
A bala antes encontrada agora é perdida
A violência está coisa maldita!

A maconha é calmante
O professor é agora o facilitador
As lições já não importam mais
A guerra superou a paz
E a sociedade ficou incapaz...

... De tudo.

Inclusive de notar essas diferenças

Luis Fernando Veríssimo.

O Poderoso Chefão













Todo chefe deveria ter dois dentes: um para abrir garrafa e o outro para doer.Aliás, esta é a verdadeira profissão de alguns soberanos que se acham o Rei do Pedaço.
Doutor Euzébio era uma Divindade em pessoa, que rodava a baiana com muita classe, acabando com a alegria de muita gente simples.Doutor de tudo e de todos e especialista em puxar tapete dos outros .
Deus fez o mundo em seis dias e só conseguiu descansar no sétimo porque Doutor Euzébio ainda não tinha comprado o tal Cartão de Ponto para o Serviço Braçal.
Era um homem discreto, de meias palavras, cujo vocabulário se resumia em Din-din .Como ganhar, como aumentar, como lucrar!
A sua mãe era mais famosa que qualquer juiz de futebol e a mais falada do mundo , sempre por debaixo do pano , é claro. Ninguém tinha a petulância de fazer qualquer comentário idiota na cara do poderoso chefão .
O seu rico dinheirinho não comprava um momento feliz; não sabia piadinhas de sogra, nunca ria gostoso e não fazia Amor.Seu corpo era uma máquina que apenas fazia intrigas, lhe pesando feito um tijolo na própria Alma .
Já mandou muita gente embora simplesmente com seu olhar, acompanhado de um discurso cabeludo e um palavrão no capricho.Tudo isto sem abrir a boca.
Só que os chefes também são de carne e osso e um dia nasceram, como qualquer mortal.E o aniversário daquele deus estava chegando como uma bomba na cabeça de cada um, que já pensava numa surpresinha especial, que lhe explodindo até a raiz do cabelo.
Assim a turma do escritório pediu que o Office-boy organizasse tudo nos mínimos detalhes e Biribinha queria mais era se vingar do chefe.Foi observando aos poucos seu jeito cri-cri e pronto, deu o diagnostico:
- Doutor Euzébio precisa de um agito da HORA!
Não contou pra ninguém e esperou que chegasse a sexta-feira; apenas para disfarçar suas intenções, levou um bolinho de fubá com uma vela vermelha.Doutor Euzébio nem se abalou e como sempre foi o último a sair com seu jeito de Caxias ambulante.
Mas quando chegou em casa onde morava sozinho com seu cachorro Bizú, teve a maior surpresa de toda a sua vidinha sonsa : cinco mulheres de todas as cores e tamanhos lhe aguardavam no portão.
- É aqui que mora o Euzébinho? – perguntaram em coro.
Ele só teve tempo de trancar o portão com o cadeado.
Assim começou a festa.Dias se passaram e Doutor Euzébio sumiu do mapa.Não atendia nem o telefonema da própria mãe. Já era quinta-feira ,quase dez horas da manhã, e nada.
Chegou a hora do almoço e ninguém tinha notícias do pobre coitado.Biribinha estava se remoendo de arrependimento, quando recebeu o seguinte recado:
-Infelizmente Doutor Euzébio foi encontrado quase morto; pálido, seco e arreganhado, mas rindo em gargalhadas, como que se fosse o homem mais feliz do mundo .E mandou avisar: ninguém precisa trabalhar durante o resto da semana porque ele decretou feriado nacional !
Agora estava de cara nova e de bem com a vida, porque um momento de prazer pode transformar nossos dias numa surpresa inesquecível, mágica e digna de um PODEROSO CHEFÃO!

Silmara Retti

O perdão

















Desde que Beatriz engravidou aos 16 anos de idade, Seu Walter morreu para o mundo !
Armou o maior barraco, acusando a mulher de cúmplice nesta maracutaia toda e aproveitou o ensejo para ter um piripaque fulminante .
Não adiantou dizer que isto acontece com as melhores famílias, porque ele não se conformava que a menininha do papai não brincava mais de boneca .Ela gostava também de um boneco !
Beatriz esperava ansiosamente que o pai saísse para o serviço para que pudesse fazer a festa pelas costas do infeliz.E foi este detalhe macabro que acabou com a alegria de Seu Walter , fazendo com que deixasse de viver a vida como antes . Trancou-se definitivamente atrás de uma máscara de ferro e não achava mais graça em nada .
O tão famoso almoço de domingo faliu de vez e agora que cada um passasse em sua própria casa .
O que mais lhe incomodava era a traição explícita de Beatriz , por ser uma criança que tinha de tudo e que de repente cutucou a onça com a vara curta !
Quase matou o “papy ”do coração , enganando a todos com aquela carinha de galinha morta .
Mas a vingança de Seu Walter foi cruel demais ...Jogou a pobrezinha de mala e cuia no olho da rua sem direito a um pingo de clemência .
O que aconteceu depois com ela, só Deus sabe .
Foi osso duro de roer ! Fazia faxina para fora com a barriga enorme varrendo o ladrilho, apenas para conseguir se manter .
Nunca mais se viram .Nunca mais falaram sobre o assunto ... Toda aquela mágoa fez um rombo danado no peito de Seu Walter, que passou a ficar muito doente .
Sentia dores ali dentro e se recusava à fazer uma consulta médica .Pra quê ficar bom, se não tinha mais nenhum motivo para ser feliz ...
Os outros filhos tentavam colocar panos quentes na situação, porém não tinha jeito que desse um jeito .
Beatriz estava sozinha e ele nem queria saber notícias de seu paradeiro misterioso .Arrancou todas as fotos da estante e proibiu que tocassem em seu nome , transformando o quarto num depósito de cacarecos .
Foi muito triste para os dois .De um lado estava um pai com o corpo dolorido de tristeza e de outro ,uma menina tentando ser mulher às suas próprias custas .
Era difícil saber quem tinha razão, pois a vida da gente é um tal de acertos e erros que não tem tamanho !
O tempo é curto e não vale à pena ficar amassando barro, no mesmo lugar .O caminho é cheio de surpresas e cair faz parte do dia-a-dia ...
Faltava pouco para o nascimento da criança e Beatriz se sentia mais forte do que nunca .
Arrumou algumas coisinhas dentro de uma sacola de plástico e foi para a maternidade .Não tinha ninguém e precisou assumir a sua gravidez com unhas e dentes !
Lembrou-se do pai que havia lhe ensinado desde pequena a ser forte e determinada , enfrentando os problemas com a cara limpa e com muita dignidade .
Assim pensou no seu jeito carinhoso de lhe colocar no colo, na pior das dificuldades e sentiu saudades .
Como o velho Walter fazia falta nessas horas !Queria que estivesse ali, com ela .Mesmo que fosse para lhe dar um puxão de orelhas .
Quando o filho de Beatriz chorou para o mundo, ela chorou também .Era uma mistura de emoção, medo, de felicidade ...Mas a felicidade maior foi quando aquele homem envergonhado apareceu do nada, trazendo com ele tudo de bom .
Tinha no peito o peso da mágoa, pronta para se desfazer em lágrimas , lavando a alma num sentimento mágico chamado perdão .Eles não conseguiram pronunciar nenhuma palavra, qualquer comentário seria demais naquele momento .
Seu Walter a colocou no colo como que se fosse a mesma menininha de sempre .Beatriz ainda tentou lhe explicar aonde tinha errado, mas para quê ...Já passou há tanto tempo !
Ele estava se sentindo outro e as dores no peito sumiram, pois eram dores do passado .Tinham muito o que conversar , o que se abraçar e o que se tocar .
Com certeza domingo teria aquele churrascão na casa do Seu Walter e Beatriz estaria de volta , com um motivo todo especial para se perdoar !

SILMARA RETTI

A SOLITÁRIA DE IPEROIG






















A Solitária de Iperoig - pseudônimo de Idalina do Amaral Graça - foi, indiscutivelmente, uma das personagens mais notáveis e marcantes na vida de Ubatuba.

Nascida em Ilhabela - quando o Litoral Norte se debatia na mais angustiosa crise de decadência -, órfã, ainda na infância, enfrentando no seio da família sérios problemas de sobrevivência, sem meios de freqüentar a escola primária, na qual não conseguiu ao menos dois anos de comparecimento, a ela só cabia seguir o exemplo dos jovens caiçaras daquele tempo: emigrar. Ir para Santos onde facilmente encontraria mercado de trabalho e, conseqüentemente, sorriam promessas de dias mais tranqüilos, mais felizes.

Foi assim que Idalina, em tenra idade, totalmente só, ignorante, desprotegida, abandonada ao léu, soube enfrentar a cidade grande, com todas as vicissitudes, todos os seus vícios e misérias, e, com galhardia, de ânimo forte e cabeça erguida, pôs-se a lutar na esperança de atingir destino melhor.

Enfrentou o pior. Foi empregada doméstica. Vagou de casa em casa suportando, sem meios de reação, admoestações, reprimendas e a interminável série de injustiças que só acontecem aos fracos e desprotegidos.

Mas, no decurso dessa penosa caminhada, sempre que podia suavizava sua desdita na leitura de todo material impresso que lhe chegava às mãos, desde retalhos de jornais até compêndios que obtinha por empréstimo de raras pessoas compreensivas, das quais conseguia se aproximar.

Foi esta a sua escola, foi assim que conseguiu acumular algum conhecimento, para que, no futuro, pudesse extravasar em rústicas palavras toda a sensibilidade que lhe transbordava da alma!

Idalina trabalhava, sofria e sonhava!

Certo dia o destino apresentou-lhe aquele que seria o fiel companheiro de seus dias pela vida afora, Albino Alves da Graça, igualmente caiçara, natural de Ubatuba, que também lutava por melhores dias na mesma cidade praiana.

Casados, mas desambientados na trepidação da cidade grande e saudosos do bucolismo das regiões em que nasceram, vieram para Ubatuba, onde, depois de pouco tempo como comerciantes na Enseada, estabeleceram-se com pequeno e modesto hotel na cidade, no Largo da Matriz, no qual Idalina se multiplicava no desempenho de todas as tarefas, desde faxineira, arrumadeira, lavadeira, até cozinheira.

Quando o hotel esvaziava - porque raros visitantes procuravam Ubatuba naquele tempo - Idalina lia e escrevia. E escrevendo às ocultas, passava para o papel o rico manancial de sua fértil imaginação.

E quantas vezes, atravessando a praça ia à minha farmácia, que ficava em frente ao hotel, para que eu datilografasse admiráveis páginas literárias, rústicas na forma, mas de conteúdo transbordante de lirismo e poesia.

- Estou guardando todos os meus escritos - ela me dizia - porque um dia hei de publicá-los.

E assim aconteceu. Willy Aureli, o sertanista desbravador dos sertões de Goiás e Mato-Grosso, o brilhante jornalista paulistano, seu hóspede freqüente e seu amigo íntimo e fraterno, rebuscando guloseimas nas prateleiras da cozinha, encontrou seus originais atulhando o repositório de uma lata vazia. Foi, portanto, Willy Aureli quem, burilando-as, levou suas produções às páginas dos jornais da Capital, tornando conhecida aquela que passou a ser denominada "Escritora Iletrada" - a Solitária de Iperoig.

E nessa condição acercou-se de grande número de amigos e admiradores, literatos como ela, entre os quais, além de Willy, destacavam-se Monteiro Lobato, Virgínia Lefevre, Paulo Florençano, Evaldo Dantas, Wladimir Piza, Guisard Filho, Audálio Dantas, Urbano Pereira, Luiz Ernesto Kawall, Cesidio Ambrogi, Gentil de Camargo e tantos outros, com os quais manteve estreito e cordial relacionamento.

Mas a divulgação dos seus escritos e a honrosa plêiade de amigos conquistados não lhe deram plena satisfação. É que a esse tempo seu marido apresentava grave infecção num dedo do pé, enfermidade cuja intervenção cirúrgica era inevitável.

Transferido para Taubaté, ante a absoluta falta de recursos nesta cidade, depois de longa temporada hospitalizado, devido à progressão do mal, que lhe atingiu o membro por inteiro, Idalina trouxe de volta seu marido, mutilado, devido à amputação da perna atingida.

Inicia-se aí a fase de maior sacrifício, de total devotamento e abnegação daquela mulher, multiplicando-se em mil atividades para que nada faltasse ao homem que não lhe negou o seu nome, nos dias incertos e atribulados de sua juventude em Santos.

Passaram-se meses e Albino faleceu.

Enviuvando sem descendentes, sentindo-se só, desprendida como sempre foi, doou seus poucos haveres - sua casa, seus utensílios - aos menos favorecidos, com a preocupação de fazer o bem aos pobres, fracos, desamparados e enfermos, enfim, a todos quantos necessitassem de u'a mão amiga ou de uma palavra de consolação.

Surpreendentemente, com toda essa gama de encargos e preocupações, de trabalhos e sofrimentos, Idalina ainda encontrava momentos para pensar e escrever!

Com a ajuda de amigos dedicados, entre eles o Mecenas brasileiro, Francisco Matarazzo Sobrinho, editou seu primeiro livro - TERRA TAMOIA - preciosa obra literária, infelizmente esgotada, esperando-se que amigos remanescentes promovam uma nova edição.

Posteriormente editou BOM DIA UBATUBA, e dava andamento a uma terceira obra quando a morte traiçoeira veio arrebatá-la do nosso convívio.

Esta, a Solitária de Iperoig, Idalina do Amaral Graça, mulher excepcional, de passagem marcante na História de Ubatuba.

Bruna Daniele

quarta-feira, 8 de julho de 2009

O Menino Vidente






















Dona Francisca morava numa casinha simples com quatro filhos e para cuidar de todos tinha que rebolar miudinho, mas era uma mulher de pulso firme e nunca deixou a peteca cair .
Foram criados como que se fossem os filhos do patrão e Peninha , seu moleque caçula, sempre foi muito miudinho com pernas finas e esfoladas de tanto trepar na goiabeira .
Quase não abria a boca e morria de medo dum pedaço de cinta que a mãe guardava atrás do armário .Só que de uns tempos pra cá parecia esquisito , cheio de mistérios e não queria ficar sozinho um minuto sequer .
Enquanto dona Francisca fazia os afazeres domésticos, ficava enrabichado debaixo de sua saia , feito bala de goma .
- Que menino bobo! - resmungava, ordenando que fosse brincar no terreiro .
Porém Peninha começou a chorar dizendo que não queria sair do seu lado de modo algum .Nem se importava com o pedaço de cinta e poderia até lhe bater ( se quisesse) porque sentia muito mais medo dos “fantasmas brancos” que perambulavam por aí .
Cruz Credo ! Se Dona Francisca já era mística, cheia de badulaques no pescoço e medalhinhas da sorte, não teve dúvidas : seu menininho magrelo era um ser iluminado, um vidente ou talvez um SANTO .
De repente tudo mudou , não demorando muito para que fizessem fila na sua porta querendo apenas uma consulta com “Mestre Peninha ” , que estava todo perfumado por incenso , numa poltrona confortável doada por um comerciante do bairro .E queriam saber tudo: se a mulher saia com o padeiro, se ganhariam na loteria e se faria sol ou chuva no final de semana .
Peninha resmungava de raiva porque não conseguia enxergar nada disto , apesar que via o tal fantasma branco acompanhar cada pessoa .
Dona Ritinha tinha certeza que era o sogro falecido, Seu Almir se arrepiou todo dizendo que se tratava do tio português que havia morrido afogado e Peninha não dizia nada, pois não tinha tempo nem para respirar .
Ganhou tanto presente que sua mãe distribuía para as outras crianças e o restante guardava num caixote velho; era livros de magia, turbantes de cetim, medalhas...
Sua fama correu por toda a redondeza e comentavam numa só voz que aquele menino trazia sorte, muita sorte.
Construíram um Altar para que pudesse ser colocado e tocado durante as horas do dia ...
Conta a lenda que Mestre Peninha curou uma gastrite aguda, uma crise de nervos e mal olhado, sem cobrar um tostão . A galera gritava seu nome, enquanto ele continuava rodeado por velas de todas as cores :
- Mestre Peninha, olhe por nós !
E ele olhava, faiscando de raiva .Queria mesmo trepar nas árvores, correr atrás das galinhas do quintal, chupar laranja deitado na rede ...Só que sua vida tinha mudado e nem podia mais usar chinelo de dedos .
Parecia uma empadinha embrulhada para viagem, com sua túnica dourada que lhe fazia tostar de tanto calor .
- Levita, mestre Peninha ...Voa com seus poderes !
Até que numa tarde Doutor Jair Gomez bateu palmas em sua porta pedindo uma senha para se consultar com o menino vidente .Aguardou pacientemente duas horas de espera e quando chegou a sua vez, apenas levantou uma placa com algumas letras coladas :
- Me diga garoto o que você consegue enxergar aqui ...
Mestre Peninha foi taxativo, dizendo que só conseguia ver vultos esbranquiçados .Então Dr. Jair sorriu aliviado por saber que não estava diante de um sabichão curandeiro ...
- Mestre Peninha precisa apenas usar óculos !
Foi um reboliço danado e as pessoas rasgaram suas senhas, indo embora .Deste dia em diante o menino vidente estava muito mais feliz, sem consultas e sem fantasmas ...Somente com seu óculos novo .
E no seu mundo de fantasias continuava a ser mestre pendurado no último galho da goiabeira .
Na verdade Peninha nunca curou ninguém, mas com certeza o povo tinha o peito banhado em fé, fazendo suas próprias curas e transformando esta energia no milagre da VIDA .

Silmara Retti