terça-feira, 30 de junho de 2009

E como tudo começou


Eu sempre fui uma menina estranha, cheia das graças, que ria de tudo ao meu redor.Ria muito mais das fantasias que costumava criar em torno de certas situações que com o meu tempero, ficavam mais divertidas.
Venho de uma família simples, sendo que minha mãe era costureira e o meu pai porteiro de gráfica.Morávamos num quintal com diversas casas, todas ridículas, praticamente com dois cômodos minúsculos que mal cabiam as nossas mobílias.Na época era um armário azul turquesa e um sofá de corvim malhado.Um mimo!
Adorava escrever estórias num caderno e procurava usar as palavras mais difíceis, procurando com cuidado no meu dicionário escolar.Quando viajava com os meus primos para um sítio no interior, passava horas criando minhas ladainhas que não deixava ninguém ver.Era um mistério!
Sempre fui muito sonhadora e amorosa até demais.Perturbava todo mundo com beijos estralados e com os meus abraços de urso.Deveria ser carência, porque tinha necessidade de carinho, de me sentir amada.
Na escola fazia questão em ser uma ótima aluna e até o colegial só tinha nota DEZ em tudo.Sentava na fileira do gargarejo e ficava de pé, para a ira da galera, todas as vezes que o professor entrava na sala de aula.As minhas redações eram as melhores e sempre lia em voz alta para o restante da turma, fazendo com que suspirassem de raiva por eu ser tão idiota.
Quando completei doze anos nos mudamos para a Mooca e vivi um romance enlouquecido que me sugou a própria alma!
Esqueci de mim mesma e fui muito feliz durante o dia e extremamente infeliz a noite.Era uma mistura de sorrisos, lágrimas e emoções.
Resolvi registrar aquela paixão em diários que guardava embaixo do colchão.Dizia que quando ficasse mais velha o transformaria em livro.
De tanto que me lamuriava o meu pai me eu de presente uma máquina de escrever e aí passava as noites em claro escrevendo, ao som de um radinho de pilha.
Naquela época não tinha essa coisa de “um real”. Éramos pobres e inventei de vender gelinho de groselha para ganhar um dinheiro extra.Mas como era muito criativa, logo levantei uma freguesia, montando uma equipe de vendedores; os moleques vendiam na rua pra mim e eu só ficava no caixa.
Depois fui tia de Perua.Sabe como é? Ia amontoada numa Kombi com um monte de alunos e ao chegar em suas casas, ajudava com a mochila.Que mico!
Com dezoito anos passei no vestibular de psicologia sem ao menos ter feito um cursinho. Só que para a minha decepção, não tinha dinheiro para pagar a FMI, uma Faculdade cara e que era longe de casa.Chorei como uma louca, cai numa depressão profunda, fiz greve de fome...
Os meus pais sofreram comigo, porém não teve jeito que desse jeito.Então prometi a mim mesma que nunca mais deixaria de realizar os meus sonhos.
Prestei um Concurso Estadual para ser funcionária pública e na minha prova de datilografia, enquanto minhas amigas digitavam a todo vapor, eu consegui escrever apenas três linhas, mas sem erros.Foi batata; eu fui classificada.
Comecei a trabalhar no Posto de Saúde da Vila Maria e era uma anta! Chegava sempre atrasada com uma bolsa de viagem nas costas.Ali tinha um pequeno balde de comida, sucos, revistas e um rádio que erguia o volume no último, no programa do Gil Gomes.Pra quem não conhece, o Gil Gomes contava causos policiais num drama de fazer chorar lágrimas de sangue.E apesar da minha inexperiência, fiz bastante amizades .
Prestei um novo vestibular e entrei no curso de Letras.Tudo bem.Eu paguei a minha matrícula e todas as mensalidades.Só não sobrava dinheiro para os livros e o lanche na cantina.
Sem estresse! Tirava xerox dos amigos e estudava em casa.E na hora do intervalo vendia desenhos para conseguir comprar um lanchinho.
Era uma picareta do caramba! Passava listas de Campanhas de Caridade: para os gatos abandonados, para os cachorros cegos de um olho, para as mulheres vítimas da guerra...E com isto levantava um fundo gordo que ajudava nas minhas despesas do mês.
Casei-me com 22 anos e ainda era uma criança.Mesmo grávida, com a barriga varrendo o chão, jogava taco até tarde no meio da rua.
Já tinha escrito o meu primeiro trabalho: “ESQUIZOFRÊNIA, O ÓPIO DA MENTE” e ele estava engavetado num armário velho.Não tinha mais tempo para escrever porque vivia um romance mexicano .
Quando o Fábio morreu, em 1997, quase pedi licença pra ele, me enterrando junto no mesmo caixão.Tinha apenas 28 anos de idade e comi grama de tanto sofrimento!
Nisso parei pra pensar.O tempo não voltae precisamos evoluir, sempre.Então na mesma semana do seu falecimento, aproveitando o meu baixo astral, escrevi alguns poemas e mandei para vinte e dois concursos literários.Fui classificada em todos e resolvi escrever “O LOUCO DA RUA ENCANTADA”.
No início era apenas uma crônica.Depois cresceu, se transformando em conto.
Queria que o nome dele ficasse conhecido; que as pessoas soubessem que o tal louco que tanto desprezaram era um ser humano único e inesquecível.
Mandei textos para os jornais e o meu amigo Tony Luís, que já tinha um programa de sucesso na rádio, me convidou para contribuir com algumas crônicas que seriam interpretadas por ele.Que crônicas? Eu só tinha poemas de choromelas, tristes e deprimidos.Aí ele me deu uma dica:
- Inventa. Quero uma coisa alegre e vibrante!
E inventei, por quase dois anos.Foi super legal.As pessoas curtiam as crônicas, pois eram muito populares.São essas do site e que você terá a oportunidade de conhecer.
Mas o meu sonho de publicar o livro “O LOUCO DA RUA ENCANTADA” continuava engavetado. Concorri com ele no Mapa Cultural de Literatura e fui classificada a nível local e regional, representando Ubatuba lá fora.
Que máximo! Mas até publicar um livro, parecia muito distante...Nunca fui muito religiosa, pois questionava sempre.
Na verdade achava que Deus não ia muito com a minha cara; havia ficado bastante revoltada com a morte do Fábio.
Mas numa noite, enquanto voltava da padaria, comecei a conversar com Ele, lhe pedindo uma oportunidade de conseguir realizar o meu sonho.Fui dormir e no outro dia apanhei todo o meu trabalho, feito na máquina de escrever, e fui até a Secretaria de Educação de Ubatuba, pedir para que mostrassem aos alunos .Que ousadia, né?
O Secretário estava viajando e fui atendida pela professora Nirta Maria Noronha Mendes.Ela era professora de literatura e eu nem sabia.
Recebeu-me super bem e começou a ler os meus textos ali mesmo.Quando terminou, sorriu pra mim numa proposta irrecusável:
- Estamos envolvidos com o Projeto Furnas e Tom da Mata.Quer escrever algo a respeito?
Claro! Fui pra casa e me acabei na criação.Ao lhe mostrar o que havia feito; inúmeras cartilhas desenhadas com giz de cera, panfletos e textos educativos, me convidaram para ser a escritora do projeto em Ubatuba.E a minha maior remuneração foi o reconhecimento das pessoas.
Fui me envolvendo em outros projetos e graças a ela, ao professor Corsino e ao prefeito Paulo Ramos eu consegui transpor algumas dificuldades e superar os próprios limites.
Publiquei o meu livro na XVI Bienal Internacional, em São Paulo e firmamos uma parceria.
No ano passado publicamos a cartilha “Ambiente Vivo” e ainda tenho muitos projetos pela frente , porque o ser humano não morre quando deixa de existir, mas quando deixa de sonhar...Hoje continuo na luta e sei que tenho muito que aprender e principalmente a conquistar .
Este site é um recomeço de um começo...e com certeza eu chegarei lá .Conto com você. Silmara Retti

Eu acho que voce gosta de poesia...

quarta-feira, 24 de junho de 2009

O Menino Vidente

















Dona Francisca morava numa casinha simples com quatro filhos e para cuidar de todos tinha que rebolar miudinho, mas era uma mulher de pulso firme e nunca deixou a peteca cair .
Foram criados como que se fossem os filhos do patrão e Peninha , seu moleque caçula, sempre foi muito miudinho com pernas finas e esfoladas de tanto trepar na goiabeira .
Quase não abria a boca e morria de medo dum pedaço de cinta que a mãe guardava atrás do armário .Só que de uns tempos pra cá parecia esquisito , cheio de mistérios e não queria ficar sozinho um minuto sequer .
Enquanto dona Francisca fazia os afazeres domésticos, ficava enrabichado debaixo de sua saia , feito bala de goma .
- Que menino bobo! - resmungava, ordenando que fosse brincar no terreiro .
Porém Peninha começava a chorar dizendo que não queria sair ao seu lado de modo algum .Nem se importava com o pedaço de cinta e poderia até lhe bater ( se quisesse) porque sentia muito mais medo dos “fantasmas brancos” que perambulavam por aí .
Cruz Credo ! Se Dona Francisca já era mística, cheia de badulaques no pescoço e medalhinhas da sorte, não teve dúvidas : seu menininho magrelo era um ser iluminado, um vidente ou talvez um SANTO .
De repente tudo mudou e não demorou muito para que fizessem fila na sua porta querendo apenas uma consulta com “Mestre Peninha ” , que estava todo perfumado por incenso numa poltrona confortável doada por um comerciante do bairro .E queriam saber tudo: se a mulher saia com o padeiro, se ganhariam na loteria e se faria sol ou chuva no final de semana .
Peninha resmungava de raiva porque não conseguia enxergar nada disto , apesar que via o tal fantasma branco acompanhar cada pessoa .
Dona Ritinha tinha certeza que era o sogro falecido e Seu Almir arrepiou-se todo dizendo que se tratava do tio português que havia morrido afogado...Peninha não dizia nada, pois não tinha tempo nem para respirar .
Ganhou tanto presente que sua mãe distribuía para as outras crianças e o restante guardava num caixote velho; era livros de magia, turbantes de cetim, medalhas...
Sua fama correu por toda a redondeza e comentavam numa só voz que aquele menino trazia sorte, muita sorte.
Construíram um Altar para que pudesse ser colocado e tocado durante as horas do dia .
Conta a lenda que Mestre Peninha curou uma gastrite aguda, uma crise de nervos e mal olhado, sem cobrar um tostão . A galera gritava seu nome enquanto ele continuava rodeado por velas de todas as cores :
- Mestre Peninha, olhe por nós !
E ele olhava, faiscando de raiva .Queria mesmo trepar nas árvores, correr atrás das galinhas do quintal, chupar laranja deitado na rede ...Só que sua vida tinha mudado e nem podia mais usar o seu querido e idolatrado chinelo de dedos .
Parecia uma empadinha embrulhada para viagem, com sua túnica dourada que lhe fazia tostar de tanto calor .
- Levita, mestre Peninha ...Voa com seus poderes !
Até que numa tarde Doutor Jair Gomez bateu palmas em sua porta pedindo uma senha para se consultar com o menino vidente .Aguardou pacientemente duas horas de espera e quando chegou a sua vez, apenas levantou uma placa com algumas letras coladas :
- Me diga garoto o que você consegue enxergar aqui ...
Mestre Peninha foi taxativo e disse que só conseguia ver vultos esbranquiçados .Então Dr. Jair sorriu aliviado por saber que não estava diante de um sabichão curandeiro ...
- Mestre Peninha não é vidente coisa nenhuma. Ele precisa apenas usar óculos !
Foi um reboliço danado e as pessoas rasgaram suas senhas, indo embora .
- Picareta de uma figa!
Deste dia em diante o menino vidente estava muito mais feliz, sem consultas e sem fantasmas ...Somente com seu óculos novo e no seu mundo de fantasias continuava a ser mestre em conseguir pendurar-se no último galho da goiabeira .
Na verdade Peninha nunca curou ninguém, mas com certeza o povo tinha o peito banhado em fé, fazendo suas próprias curas e transformando esta energia no milagre da VIDA .


Silmara Torres Retti

A menina e a Lenda



















No século passado existiu uma menina que sentiu muito frio e teve seu corpo desnudo aquecido por um livro de história, desfolhado cuidadosamente para contemplar todas as figuras .Ainda não sabia ler, mas sua mãe traduzia cada desenho desbotado pelo tempo, inventando rimas que pudessem adormecer seus sonhos; “ Quando escurecer feito um breu e o céu explodir como uma profecia tudo de mais lindo cairá do infinito e todos as crianças serão eternamente felizes ” .
Com o início de 2001 a história seria diferente :
- saúde, paz , prosperidade ... e comida para toda a gente !Assim contava a lenda e aquele menino acreditou .
Seria o começo da confraternização universal e a nova era do poder .O Apocalipse conquistado por todos os povos reunidos num momento único de prazer .
Então ela esperou que todos dormissem e dobrou as páginas do livro de histórias .Despediu-se da sua família , em silêncio , e foi embora dali prometendo consigo mesmo que voltaria com os bons tempos, trazendo muita felicidade para todos .
A alma daquela menina estava em festa, refletindo o brilho cintilante dos seus olhos como que se fosse um cartão colorido pintado com as cores da Vida .
Era um olhar que projetava o futuro; ofegante, inesperado, acelerando o coração numa explosão de ansiedade .
Ela havia lido no livro e as páginas nunca mentiram ...
Desejava aqueles “dias melhores” para que pudesse ter um pouco mais de felicidade também:
Queria uma boneca nova com roupas de cetim, os rios, praias e amendoeiras ...Queria ser Princesa por um instante ! Mas enquanto fosse apenas uma criança de rua ainda era dona de todas as vitrines da cidade e procurava em seus enfeites um motivo justo para recomeçar .
Caminhou por esquinas desconhecidas e sentiu que não estava só porque levava dentro de si a esperança de um mundo melhor .E finalmente quando chegou o primeiro instante deste dia, o céu se transformou e tudo parecia um cenário para a “história prometida” ; a fábula da tecnologia e o desejo de conhecer o desconhecido sentia frio na alma, fome de caridade, saudades de casa ...
Fechou os olhos ainda abraçado com as velhas páginas já um pouco rasgadas e chorou decepcionada, pois o novo ano acabava de estourar no céu estavam diante de 2001.
As pessoas comemoravam intensamente, mas ela ainda não tinha motivos para isto .E ali no canto da rua, numa sarjeta qualquer, adormeceu abandonada ( como antes), porque para aquela menina a “história encantada” não passou de uma Lenda .


Silmara Retti

terça-feira, 23 de junho de 2009

O menininho perdido

















Eu era um menininho comum, lambido e cheio de danadisse expressa num olhar maroto a procura de um pipa no céu .E nos meus sonhos de moleque era Rei no meu próprio mundo .
Fui dono de todas as estrelas, de todos os doces e brinquedos ...Mas ninguém sabia que quando fechava a porta do quarto os duendes se espreguiçavam das gavetas e riam comigo do modo engraçado que as pessoas usavam sapatos e relógios de pulso.
Fui crescendo e as minhas fantasias também ...
Ficamos grandes demais para esta realidade monótona e então decidi arrumar as malas carregando toda a minha ansiedade .Com quinze anos mudei-me por inteiro para este castelo imaginário onde poderia reinar sem limites .
Fui uma tristeza para minha mãe , uma decepção para o meu pai e no íntimo fui um fracasso para mim mesmo porque não conseguia encarar as pessoas , me escondendo do mundo atrás de um óculos escuro que usava para disfarçar o vermelhão dos olhos .
Não tinha amigos, não tinha saúde e não tinha paz! Minha perspectiva diária era construir aquela imagem de bandido somente para encobrir o mocinho medroso que estava ali dentro da minha alma .
Estava consumindo cada vez mais e o muito, já era pouco . Só conseguia sorrir quando estava dopado e insistia em parecer alegre, mesmo com um sorriso triste que desbotava com o efeito da DROGA .
As mãos tremiam e sentia vergonha daquele corpo frágil, pálido e quase morto .Mas todas as vezes que dizia NÃO ; a vontade, o vício e a fissura se transformavam dentro de mim e eu desejava desesperadamente aquele pacotinho que me fazia viajar para bem longe da fome, da miséria e da falta de Amor .
Quando conseguia abrir a porta do quarto, me derretia no assoalho com os olhos pairados no teto e não era mais o sujeito valente que falava grosso com os amigos, numa explosão eloqüente , causando um impacto na sociedade .Sentia medo de tudo e o maior deles era do embrulho miúdo que trazia colado no corpo como que se fosse uma segunda pele .Talvez um revestimento que encobrisse a minha covardia , a minha insegurança e a minha verdadeira personalidade .
Ali embrulhado estava o pó mágico que tinha o poder de me deixar poderoso para os outros, porém pequenino diante de mim mesmo .
Começou feito uma brincadeira e aos poucos foi se tornando uma obsessão e a maior delas era a minha paz interior que não se encontrava em nenhuma drágea .
Depois vinham as lágrimas coladas nos lábios trêmulos e eu jurava em voz alta que seria a última vez ...
Só que o meu corpo pedia mais ! E fazia de tudo para satisfazer aquela fome animalesca .Já não sentia vergonha em vender o tênis, o relógio, o sexo ...
A única luz que conseguia enxergar era o brilho do pó e ria , numa emoção fulminante que não durava o suficiente para que pudesse ser feliz .
Precisava usar , de qualquer modo, mesmo que um vácuo me absorvesse feito uma febre e tudo de lindo neste mundo era pouco para mim .
Meu pai me via, porém não me enxergava, preferindo fechar os olhos para não sofrer .E a minha dor ? Dentro de mim, tudo doía .
Entre nós havia um abismo que separava o meu mundo do seu e estávamos cada vez mais distantes !
Pai, se você não tivesse me omitido ...Se você tivesse me encarado de frente, teria visto a minha expressão de pavor .Somente assim perceberia que éramos todos inocentes nesta luta pela vida !
Durante anos acompanhou a minha agonia, fechando os olhos para não ver, sufocando o peito para não sentir e travando as mãos para não me abraçar junto ao seu corpo .Eu era apenas um menininho carente de colo que queria apenas trafegar pelas veias muita saúde , como qualquer outra criança da minha idade .
Porém o meu pai nunca ultrapassou as barreiras do preconceito, deixando-me cada vez mais sozinho .
Sei que sofria tanto quanto eu, chorava também do outro lado , mas não conseguia me erguer daquela sarjeta .
Assistia a tudo como que se fosse um filme e depois virava as costas, voltando para o seu mundo, simplesmente indignado .Apenas indignado, e nada mais! Eu tinha somente duas lembranças do meu pai ;
A primeira era daquela tarde ensolarada que lhe esperei durante horas no portão , guardando no bolso da bermuda a grande surpresa que iria lhe fazer : um dentinho de leite que havia caído logo cedo no travesseiro .Olha de lá, olha de cá e nada !
Que demora, meu pai não vinha .Corre pra cima e pra baixo .Cadê ? De repente lá vinha ele pela rua com sua carteira marrom debaixo do braço .O importante era a
sua carteira marrom, porque dentro dela estava guardado um calendário de uma loira pelada e a moedinha da sorte.Eu sentia saudades do meu pai porque era um homem muito ocupado e nunca teve tempo para mim .
- Pai, pai, me trouxe uma balinha ?
E lá vinha ele pela rua com sua carteira marrom, quase vazia se não fosse os documentos remendados com durex .
Caminhávamos juntos com grande dificuldade porque seus passos eram ligeiros, de gente importante .Silêncio.
Abriu o portão e entramos pelo corredor do quintal .
- Pai, hoje fui na venda sozinho e nem me perdi .E também tenho uma novidade ...meu dentinho caiu e agora já tenho uma janelinha . - dei risada .
Ele não riu .Ouviu e nem se importou .Deveria estar cansado, isto mesmo .Foi até o tanque de lavar roupa e molhou o rosto suado .A professora havia me dito sobre a violência e queria lhe explicar tudo o que já sabia .
- Pai, a violência machuca , principalmente o coração .
Pulei no seu colo, cantando .Sorriu rapidamente me colocando de novo no chão .Foi para a sala e ligou a TV no noticiário das oito , nervoso com o grande número de menores abandonados pela cidade .Só que eu era um deles ...e não sabia !
Aprendi com ele o verdadeiro sentido da palavra descaso; a violência contra a alma .
E a última lembrança que tive do meu pai foi quando me encontrou morto por overdose, naquela calçada opaca como a minha própria vida ,com as mãozinhas congeladas , numa prece :

- Á você que possui a alma embalada por sonhos coloridos e vícios eloqüentes ofereço meu abraço magnético .Á você , dono dos olhos mais profundos e do corpo trêmulo,ofereço um quilo do pó da vida e uma dose de paz .Porque a paz não se encontra em cápsulas ou em sorrisos dormentes daqueles que perambulam pelos becos a procura deles mesmos !Esqueça o desespero, o pranto, o medo e me abrace , pois toda a juventude lhe agita interiormente e a capacidade de se fazer guerreiro estrangulará qualquer vício, transformando a lágrima num grito de liberdade !
Silmara Torres Retti-

O maridão




Quando Wilma encaro aquele palhaço de pijamas se despreguiçando no sofá, teve vontade de morrer! Candinho só servia para ocupar espaço na casa, reclamando da vida o dia inteiro e se rastejando com sua lerdeza fulminante.
Tinha anemia corrosiva e uma preguiça que andava de braços dados com ele feito uma comadre.E só para fazer uma graça, areava todas as panelas, encerava o assoalho e fazia faxina quinzenal.
A comidinha era preparada no capricho e Candinho sabia engarfar com categoria o estômago de qualquer um que soubesse degustar um bom prato .Parecia a Rainha do Lar .Na verdade estava desempregado há dois anos e desde então a casa virou um palacete de luxo .Com isto Wilma foi se afastando do maridão, achando que ele não passava de um trapo velho .
O amor havia acabado, a auto estima e até o próprio casamento .
Eles pouco se viam e nem se tocavam mais, porém todas as noites ao chegar do serviço o jantar já estava sendo servido com todo o requinte que Candinho podia lhe oferecer .
Mesmo assim era tratado com descaso e ironia .O clima pesava em cima de sua cabeça como um tijolo e se sentia um farelo de gente .
O seu pijama velho era um uniforme diário .Enquanto dava lustro nos moveis , ficava só de butuca na audiência que a patroa tinha com o seu programa na rádio .
Ela nem parecia a mesma .Tinha uma voz melosa e apaixonada .
- Querido ouvinte daqui, companheira do rádio dali ...
O ibope subia , deixando Candinho cada vez mais para baixo , pois Wilma queria novas emoções, novos prazeres e um outro tipo de homem .Assim ele percebeu que precisava reconquistar o seu coração antes que fosse esquecido para sempre .
Candinho resolveu lhe mandar uma carta melosa e foi um sucesso !
Nela estava descrito toda a desventura de um suposto marido que fazia de tudo para a sua esposa querida , sendo humilhado e esquecido pela poderosa .
Sem saber de quem se tratava, Wilma lhe deu o maior apoio, aconselhando o ouvinte misterioso a viver a própria vida, pois uma mulher assim não mereceria o seu amor .
Dito e feito !Ele passou a lhe escrever todos os dias , despertando a sua curiosidade feminina .
Wilma suspirava por aquele homem maravilhoso, encontrando nele o grande companheiro que sonhava possuir .
Totalmente envolvida, pediu que marcassem um encontro num lugar bem longe dali para se conhecerem melhor .
Naquela noite ela não voltou para casa na hora do jantar. Produziu-se feito uma lady e foi direto ao encontro marcado .O seu corpo tremia por dentro como uma adolescente apaixonada .
Na penumbra da noite pode ver um vulto se aproximando e teve a certeza que se tratava de um homem muito especial .Ele chegou mais perto, querendo lhe fazer uma surpresa .E que surpresa ! Diante dela estava Candinho com o mesmo jeito apaixonado de sempre .O mesmo jeito que fez com que seus olhos se enchessem de água , num encontro de corpo e alma .
Naquele momento Wilma conseguiu enxergar em Candinho o grande homem que escondia no anonimato de sua simplicidade; construindo com as próprias mãos pequenos detalhes para que ela tivesse sempre um bom dia perfumado com muita dedicação, carinho e amor !

Silmara Retti

O maço de cigarros


Desde que Dedéia foi até a esquina para comprar um maço de cigarros e nunca mais voltou, seu Orlando caiu de cama na maior melancolia, dormindo com sua foto debaixo do travesseiro, esperançoso que um dia Dedéia voltasse.Pobre Mulher! Decerto teve um mal súbito, esquecendo de vez o caminho de volta. Justo Dedéia que sempre foi meio esquecida, avoada e abololada!
Tanto que certa noite, enquanto trocavam chameguinhos de amor, ela simplesmente esqueceu o seu nome lhe chamando por... Fernando. E depois, com a cara mais lambida do mundo, desculpou-se dizendo que Fernando era a filho de sua irmã caçula.
Mas que irmã, se Dedéia era filha única?! Que cabeça!
Ela trabalhava o dia inteiro na quitada da Lurdinha e nunca se atrasou nem um minuto sequer. Até que diante de tamanha desventura, se perdeu durante cinco anos num palmo de rua, evaporando feito fumaça. E seu Orlando tá que chora aos pés da Santa, implorando o seu amargo regresso, mesmo que fosse para dar o último beijo de adeus!
Queria só um tempinho de nada para lhe perguntar, olho no olho, o motivo de seu estranho sumiço.
- Por que, Dedéia? Por que?
Ela nunca foi aquela belezura, mas não precisava exagerar assim no passeio.
Cinco anos são cinco anos e agora seu Orlando era um homem viúvo e muito bem viúvo de mulher viva. E pagava o maior mico com a vizinhança!
O falatório da vila era que Dedéia tinha outro... Outro homem, outra paixão, outra peruca.Mas o pior cego é aquele que não consegue enxergar a um palmo do seu nariz, enquanto ele continuava a venerar suas fotos pregadas pelos corredores da casa.
Era “Dedéia” de noiva, de trancinhas, de óculos de sol... E a sorte de Dedéia era que seu Orlando havia se enterrado do portão para dentro, com todas as suas lembranças, porque logo ali perto a boneca desfilava para lá e para cá com uma cabebeira ruiva e óculos escuros.
Era tão descarada que durante todo esse tempo rachava o bico ao ver que ele estava envelhecido, bitolado e fiel ao antigo amor.
Nisso sentia-se a “miss Casanga” , dizendo para si mesma que era uma mulher inesquecível, poderosa e que deixava marcas no pedaço.
Só que tudo tem a sua hora e finalmente a batata de Dedéia estava assando!
Seu Orlando não agüentou tanta saudade e resolveu ir embora para bem longe dali, onde pudesse afogar as mágoas, numa boa. Arrumou uma maleta de couro do tamanho certo para colocar o “Mundo de Dedéia” dentro; sua lingiere comida pelas traças, suas sandálias douradas e o seu retrato falido; fragmentos de um romance inacabado, separado para sempre por um bendito maço de cigarros! E pensando desta forma não falou nada a ninguém.
Não tinha rumo, destino, preocupações.Queria apenas “definhar” pelas ruas da cidade. Ruas ingratas que levaram sua mulher amada, da noite para o dia, deixando em seu lugar uma dor no peito que não tinha fim! Saiu na pontinha dos pés com a cabeça enterrada num buraco. Talvez se não sentisse tanta pena de si mesmo conseguiria erguer o pescoço e dar de cara com a cara da própria Dedéia, que passou ao seu lado com seu disfarce sinistro.
Então abriu bem os olhos e conseguiu ver o que nunca havia conseguido enxergar antes: o cinismo de Dedéia desfigurada por trás de um óculos escuro .Ah, Dedéia maldita!
Qualquer coisa que ele falasse seria mentira. E qualquer mentira tinha som de picaretagem. Seu Orlando colocou o pé no mundo, deixando para trás todas as fotos, mágoas e recordações! Ela tentou se desculpar, pedir uma chance, mas, no entanto já havia se perdido na sua própria hipocrisia desde aquela noite que nunca mais voltou. E uma mulher assim, feito aquela, não precisava mesmo voltar. Podem ir de vez, levando com elas a certeza que não deixarão mais saudades.
Silmara Retti & Raphael Retti

O Kit Milagre


















Quando Juliano “bateu” o seu ray-ban espelhado de frente com o corpão aferventado daquela deusa da gostosura quase embolotou de vez, jurando aos pés da santa que seria Amor Eterno; imaculado,sem fim ...Que mulher ! Era totalmente livre, leve e solta, prontinha para a dança do acasalamento, com seu jeito sexy de ser.
Tinha um olhar meigo, meio vesgo, insinuando um charminho dengoso com sua boca de comer biscoito .Na verdade tinha cara de “peixe frito “ .O quê ?! Isto mesmo, mas para que serve uma simples cara , hein? Bobagem ! Não tem serventia pra nada .É só amarrar um saco de feira bem apertado no gogó e aproveitar o resto.
Será que Idalina era este fenômeno de beleza , digna de um atentado ao puder atrás da moita ? Claro que não !
Tadinha, sempre foi a mais feiosa da rua ; desengonçada e cheia de complexo .A molecada metia ovo na sua cara, todas as vezes que tentava desfilar com seu shorts curtinho, achando que estava abafando no pedaço .
Só que decepcionava a galera e não tinha jeito que desse jeito ! Tiravam o maior sarro dos apetrechos “miúdos”de Idalina, colocando a coitada para escanteio, morta de raiva .Mas ela nunca desistiu ...
Queria se vingar daquela gente fofoqueira que não sabia reconhecer uma beleza moderna , diferente e exótica .E foi assim que apareceu em sua vida um mascate luxuoso que trazia dentro de suas sacolas o KIT-MILAGRE .
Meu Deus, era a revolução do século ! Estava tudo muito bem embrulhado num pacote lacrado por uma fechadura de ferro maciço .
- Quanto mistério ! - se assustou .
Mas se quisesse poderia lhe mostrar cada peça , fazendo uma demonstração rápida de sua eficiência .E o preço, hein? Ora, um Kit Milagre não tem preço ! Quanto vale um corpo suculento prontinho para dar o bote, arrancando os cabelos de qualquer homem da cidade ? Um monumento ambulante, inflável e totalmente garantido até a próxima Copa do Mundo .Era só assinar os cheques, vestir e sair rebolando , com a certeza que nunca mais seria a mesma batata palha de antes .
O Kit Milagre já vinha com um peitão artificial revestido por couro de capotão, bundinha de bola de boliche e uma cinta elástica a base de cimento cru só para dar um breque na pança ...E em poucos minutos thanthanthanthan !
Idalina se transformaria na Mulher Maravilha do pedaço, se vingando de verdade da oposição que sempre quis lhe ver por baixo , decaída, falida ...
Ela não pensou duas vezes ;
- Ah, eu quero o Kit Milagre !
Ela precisava lhe dar este presente antes mesmo que sucumbisse junto com toda a sua feiúra para debaixo da terra .E foi assim que o otário do Juliano se apaixonou por Idalina, babando feito louco em cima daquele petisco vitaminado que tinha até etiqueta pendurada nas costas .
Não teria paz na vida enquanto não desfrutasse tamanho prazer, saboreando cada gomo e se achando o homem mais sortudo do mundo .Porém Idalina levava a sério o seu KIT MILAGRE , tirando o macacão de silicone apenas no final do dia e se escondendo a sete chaves embaixo das cobertas para que Juliano não percebesse a diferença .
Nisso de olhava no espelho, sentindo pena de si mesmo por não conseguir ser feliz do jeitinho que Deus lhe fez .
Se descobrissem o seu segredo mirabolante seria difamada e apedrejada em praça pública .Mas enquanto este desfecho infeliz não chegava o negócio era impressionar aqueles abobados que caiam aos seus pés , querendo lhe arrastar para a cama de qualquer jeito apenas para conferir o material de perto .E assim Idalina se fazia de difícil , atiçando a gula de Juliano que já estava verde de paixão !
Será que a gostosura lhe daria um mole ?
Será que aquele “palhaço” morreria de tanto amor ?
Fizeram uma aposta alta, valendo dinheiro vivo , que Idalina lhe daria um olé e como Juliano não queria ficar para trás, apostou dobrando o prêmio que Idalina comeria miudinho na sua mão .
Reforçou a sua lábia de bico doce, deu um tapa no topete e investiu tudo o que tinha na conquista de Idalina, que se fazia de durona só de medo que caísse em tentação , pondo em risco o seu kit milagre .
Esta folia toda apenas deu “ pano pra manga” .O tempo foi passando e não acontecia nada , fazendo com que o pobre Juliano perdesse as esperanças .
Mas estava fissurado por aquela mulher difícil , de fibra, como poucas que ainda existiam por aí .De repente percebeu que estava apaixonado por Idalina !
Resolveu marcar um encontro romântico em um barzinho discreto e depois de muita insistência a misteriosa apareceu esbugalhando corações .
Juliano queria uma coisa mais séria: um compromisso de amor .Começou seu melodrama contando toda a verdade sobre a aposta suculenta que rolava no pedaço e que para ele , agora, não tinha mais sentido algum , pois estava louco por ela !
Assim Idalina sentiu firmeza naquela ladainha, arrastando o infeliz para dentro do seu mocó, abrindo com cuidado o zíper do macacão recheado .Ele não se fez de lerdo, estufou o peito e contou para o mundo inteiro a sua mais nova conquista : Idalina e Juliano se casaram no mesmo mês , dividindo entre os dois a bufunfa da aposta que ele ganhou com direito a um diploma de Honra ao Mérito .E o Kit milagre ? Ah, o kit milagre fez um verdadeiro milagre na vida de Idalina.Ela ensacou o bonitão, que totalmente cego de amor não reparou a diferença , satisfeito por saber que a bonitona tinha couro até sobrando, pendurado no cabide do armário .


Silmara Retti

O jogo de futebol




Por infelicidade do destino domingo era aniversário de dona Célia e ia ter aquela musiquinha melosa, fungada no cangote e o maior Love só para não passar em seco uma data tão gloriosa assim... Aliás, gloriosa pra ela que não entendia nada de nada, porque também era o espetacular Campeonato de Futebol e seu Mauro nem se lembrava que tinha mulher, quanto mais se alguém fazia aniversário.
Comprou uma caixa de rojão uma carninha gorda e a cervejinha, é claro, para molhar o bico enquanto sapateava em cima do sofá.

- “ EM CIMA DO SOFÁ NOVO NINGUÉM IA PULAR DE GALO, NÃO MESMO”-avisou dona Célia, fazendo um charminho. Mas é lógico que não... O grande encontro seria na casa do Odair e lá sim poderiam subir na antena, se precisasse. Que decepção. Ela quase enfartou, de raiva. Justo no domingo?
Então seu Mauro fingiu não estar entendendo. Pra quê fazer tanto aniversário assim? Uma mulher de classe, depois dos quarenta, nem toca mais no assunto... Poderiam comemorar no próximo domingo, se quisesse. Ou no próximo mês, quem sabe... Os olhos de dona Célia trituraram ao meio; “ um homem assim não era um homem, era um monstro”. Ela ficou de trombeta; não fez mais almoço e estava em greve. E você pensa que seu Mauro se descabelou por isto? Melhor, tinha mais tempo para a concentração, se aquecendo no fundo do quintal, decorando o hino embaixo do chuveiro e levando o uniforme todos os dias, só de medo que embolorasse no armário. E pra dona Célia, nem dava muita bola. Aliás, quem tinha que dar a bola era o seu time do coração.
Desde cedo estava em ponto de bala, engomando os seus apetrechos... Quando o cara de pau do Odair buzinou lá da esquina, ele pulou até o muro para mostrar que ainda estava em forma. E perfeita forma... de pastel.
Que desaforo. Dona Célia estava se sentindo um trapo velho, comemorando seu maravilhoso aniversário com as galinhas do quintal...
Fez uma sopinha de legumes, se enterrando de vez embaixo das cobertas e com lágrimas nos olhos ouvia os fogos de artifício explodirem no céu.
Foi se lembrando do jeito ridículo que seu Mauro conseguiu ignorar uma data tão fantástica assim, da sua petulância em lhe deixar sozinha e um sentimento amargo lhe doeu fundo no estômago.
Agora ela iria colocar o seu time em campo... Ligou o som bem alto, se aquecendo pra Revanche Final. Ajeitou os cabelos num penteado simples, pôs a sua melhor roupa e foi pra galera...
Com certeza a mulher de Odair também estaria de escanteio e resolveu lhe telefonar, agitando uma festinha da pesada. Veio a Vilma, a Leonor, a Jerusa...E a música rolava solto, com direito á muita gargalhada, bolinho de fubá e suco de uva. Nunca se divertiram tanto, dançando até com a vassoura.
Se o time de seu Mauro foi campeão, ela não teve nem tempo para lhe perguntar porque quando aquele “ palhaço” chegou murchinho com a bandeira enrolada embaixo do braço, recebeu o “ CARTÃO VERMELHO”, sendo expulso de campo, enquanto dona Célia suou a camisa numa goleada no ritmo do samba. E com tanto olé assim, deu mesmo um SHOW DE BOLA.
Silmara Retti

O galo bico doce


Tio Kiko era um sitiante daqueles que a gente só vê em desenho animado, com cara de bolo de milho e broa de fubá.Com seu cigarrinho de palha no buraco do dente fazia tudo sozinho porque a mulher tinha uma preguiça de doer o couro, até para dar no couro!
Quando não se dizia morta de cansaço, se dizia morta de raiva.E para não deixar aquela velha rabugenta bufando pelos cantos todas as vezes que precisava de uma ajuda ele mesmo dava conta do recado e fazia de tudo um pouco, apenas para não ficar de papo pra lua, na vadiagem.
Era ele e o trubufu da Dona Zilda, uma mulher sonsa e cheia de piripaques, mandando o infeliz plantar batatas logo cedo .
Os dois não se entendiam.Um achava o outro um pé no saco ! E assim iam levando a vida naquele fim de mundo, onde as horas se arrastavam lentamente pelo relógio, capengando aos poucos .
Tio Kiko não tinha mais o que inventar para se divertir, já que o único “parque de diversão” da sua casa estava enferrujado por falta de uso .
Precisava de uma emoção diferente e ficar de conversa mole com a bicharada tinha cansado sua beleza .
Sabia de tudo o que se passava dentro do sítio e o que não sabia, inventava .Era um modo gozado de matar o tempo sem que precisasse ficar na cola da patroa “congelada”, fria-fria, feito uma marmita de pedreiro .
Nem bem clareava o dia e lá ia ele pra lida ...
Até que de repente viu que alguma coisa estranha estava acontecendo no galinheiro ...A festa comia solto e era pena voando para todo lado .
- Ê , galo Nenéca .Este não nega fogo mesmo .Sempre pronto pra dar o bote !
Era o xodó da galinhada e apesar dos seus “duzentos anos” de praia, fazia acontecer .
Como pode um caco daqueles bater o ponto todo dia, fazendo tio Kiko babar de pura inveja, tentando descobrir o segredo de sua poderosa atuação cinematográfica .Nenéca era um “coroa” vitaminado , de boa aparência , coxas grossas e bico doce .
- Conta para o papai o motivo de tanta gula, conta !
Mas que nada . Aquele galo nem tinha tempo para fofocas da oposição e queria mesmo soltar a franga que tinha dentro dele .
Te garanto que se Dona Zilda tivesse um tratamento assim caliente, duvido que reclamaria tanto da vida feito um bruxa afoita .Ele sim precisava produzir feito o galo Nenéca , só para por aquela banha pra queimar num forró a dois !
Todas as vezes que o galo percebia a presença de Tio Kiko na espionagem , fazia de tudo para se aparecer rindo dele com o biquinho até torto de tanta bituquinha .
Nenéca se fazia de morto e não contava para ninguém o segredo de sua saúde sexual, matando o velho de puro despeito .
Um dia , no auge do desespero, puxou o pescoço do galo para um canto , querendo saber se era algum tipo de ração, chá ou simpatia .
- Contaaa !
Precisava aprender com ele a usufruir do próprio charme para que a vida ficasse um pouco mais divertida .E com certeza lhe daria uma recompensa bem gorda , em seu nome e no nome de toda a mulherada da vizinhança .
Só que Nenéca era um galo discreto , de bico calado e colado também .Deixou entender que essas coisas não se falam por aí, como que se fosse uma receitinha de bolo e cada um teria que descobrir o seu modo de agradar, conquistar e ser feliz .
Tio Kiko ficou uma arara .Aquele abobado se achava o sabichão e tinha que levar um corretivo .
Para acabar com sua panca encomendou da cidade um outro galo , aumentando a concorrência .Ele era muito mais novo e bonito . Seria a nova atração do pedaço, deixando o velhacão jogado para as traças ; definitivamente aposentado com seu pitombinho erótico!
Pronto , apareceu com Bitello debaixo do braço, alegre e sorridente porque quando a galinhada visse tamanha formosura, cairiam de paixão .
Deu uma piscadinha para Nenéca , fazendo charme :
- Ah, a sua batata já está assando, galo de uma figa !
Agora sim estaria vingado e sacramentado .Pobre Nenéca ; estava com os dias de gloria contados nos dedos e na certa morreria de ódio por ser desprezado assim .Porém Nenéca era um galo velho, experiente e nem se abalou com aquele frangote .
- O galo morre pelo bico - pensava .
Deixou o palhaço ciscar daqui e dali, até bater as asas de vez e foi para um canto do galinheiro bem quieto, só na “sua” .Não deu um piu sequer, esperando a hora da virada .
Bitello , novinho de tudo, sassaricava pra lá e pra cá, mas tinha a língua frouxa e contava aquela vantagem .
Tio Kiko ficava de pescoção querendo mesmo que os dois se bicassem , pois Bitello esbanjava juventude e sensualidade pelo galinheiro .Todos os dias vinha que nem um bicho louco saber das novidades :
- Quem foi com quem, quantas vezes e blábláblá .
Ficavam de cochicho durante horas e Bitello lhe dava mil dicas , segredinhos apimentados, toquinhos, receitinhas, tititis ...
Não tinha freio na língua e contava tudo , se achando o gostosão .Nisso as franguinhas do galinheiro foram ficando iradas e pasmas diante daquele fofoqueiro do caramba !
Sabe como é frangote novo; fazia de sua vida um livro aberto . Não tinha a mesma maturidade de Nenéca, que não queria ser leviano com ninguém .
- Nada a declarar - dizia, quieto em seu poleiro .
E não demorou muito para que a galinhada percebesse a diferença entre a pose devoradora de Bitello e a discrição de Nenéca .
Precisam lhe dar um desprezo e ele não suportou ser tratado como um qualquer .
Era um esnobe, com seu peito estufado e sua coxinha fina , zanzando pelo quintal, apenas contando vantagem.
Até que o aniversário de dona Zilda estava chegando e queria fazer uma graça para os seus parentes da cidade grande .Pensou em depenar um franguinho para fazer um ensopado, mas Nenéca já tava velho , duro e tinha a carne de tombar a dentadura .
Nisso caiu de quatro com os encantos de Bitello, que desfilava elegantemente pelo terreiro tentando reconquistar a clientela ...
- Que bíceps ! Que gostosura de frangote !
E num cola brinco certeiro fez com que desmaiasse de susto, indo direto para a panela .
Não teve tempo nem para dar o último suspiro .
A galinhada não acreditou quando viu Bitello em brasas, “fervendo” como sempre foi, rodeado de batatas, sendo devorado com muita categoria .Olhinho torto num olhar quarenta e três , meio amuado, sem jeito, com o bico calado, é claro !


Silmara Retti

O fantasma camarada


Cirilo era simplesmente um fantasma do espaço que não dava ibope nenhum, nem aqui e nem ali.Mordia-se todo de vontade de ser reconhecido aos olhos do Criador, já aguardando uma promoção pessoal.Quem sabe faria algum sucesso, sendo convidado, com todas as honras da casa, a ser o Anjo Mensageiro do momento, levando bilhetinhos de lá para cá numa missão sublime?
Este era o seu sonho de consumo! Mas ninguém lhe dava importância porque era muito atrapalhado e durante milhões de anos foi assim.
Alguém já ouviu falar em Cirilo ou simplesmente Cirilinho, para os íntimos? Que nada! Não passava de um tonto, sem eira e nem beira, puxando um ronco em cima de uma nuvem de pena de ganso.Sim, porque ele tinha bico de papagaio e nem se atrevia a sair batendo perna, só de medo de travar a caveirinha.
Morria de inveja daqueles que trabalhavam para o Criador, ajudando na manutenção do nosso planeta, na criação da natureza e na preservação da espécie.
Já estava se sentindo incomodado com as piadinhas que faziam sobre sua lerdeza e, tanta fama assim, apenas deixava a sua cara mais amassada do que já era.Então ficou matutando um jeito de sair bem na foto! Na verdade queria que reconhecessem o seu valor, erguendo uma estátua em sua homenagem, no próprio Vaticano.
Mas para que isto acontecesse deveria mostrar serviço e Cirilo resolveu seguir de perto um Anjo Mensageiro com a pontinha dos pés, aliás, no toquinho dos ossos já desgastados pelo passar do tempo.Ouviu atrás da porta que estavam à procura de uma tal de Cristina (ou seria Balbina), para lhe avisar que ficaria doente em breve e precisaria se cuidar.
Para ele seria o máximo da competência se conseguisse antecipar a notícia, dando um furo de reportagem.Fuça daqui e remexe dali; finalmente encontrou a casa de uma mulher maltratada pela vida, com jeito de louca, se lastimando pelos cantos da casa.

Falava como uma vitrola velha, brigando com os filhos e xingando o marido.E qual o nome da vítima? Balbina, claro.Pronto, estava diante da futura falecida.E Cirilo, muito mais vivo do que nunca, começou a preparar o ambiente para que pudesse entrar em ação.Esperou anoitecer e assim que Balbina se derreteu no sofá, morta de cansaço, caminhou até ela,cochichando no seu ouvido:
- Buuuuu!Você vai pro saco!
O quê??! Balbina não acreditou no que estava ouvindo.Só podia ser um pesadelo, daqueles brabos! Ela quase morreu de verdade, sem perceber que Cirillo era o fantasma errado com a pessoa errada.
Ficou pasma! Aquele aviso só podia ser lá de cima e estava com jeito de premonição.Lógico, só podia ser ela mesma. Sempre foi bocuda, reclamando de tudo e de todos.Com certeza aquela lamúria toda havia alcançado os ouvidos do Criador e Ele resolveu mandar buscá-la de uma vez.E agora? Nem tinha aproveitado nada da vida e já estava com a passagem comprada para o Além.
Aquele pesadelo começou a martelar na sua cabeça e sentiu que deveria curtir o pouco que ainda lhe restava. Talvez alguns dias ou minutos apenas...Abriu a janela do quarto e chovia lá fora.Era um temporal daqueles, mas parecia lindo! Que maravilhoso, merecendo até uma comemoração especial.Pela primeira vez estava mais amorosa com as crianças, beijando cada um deles com carinho.O maridão não era lá grande coisa, mas sentiria saudades de Marquito e resolveu lhe dizer tudo o que estava engasgado há anos:
- Sabia que você é muito sexy?! – se desmanchou no sofá.
Antes tarde do que nunca e diante da idéia de que partiria em breve, começou a ser feliz como jamais havia sido antes.
Eles caminhavam na praia, tomavam sorvete no calçadão e pescavam na costeira, no maior dos LOVE.Balbina e Marquito estavam curtindo a vida, numa boa, até que Cirilo se deu conta que a verdadeira vítima se chamava Cristina.Ele quase morreu de novo e sumiu do mapa, se escondendo na toca do Ben Laden. Só que os Mensageiros do Senhor sabem de tudo e enxergam longe. Tudo bem que se precipitou, que mandou uma gafe “daquelas”, mas quem nunca cometeu um engano?

Cirilo, que antes era um fantasma mixuruca, foi promovido á Estúpido Cúpido numa festa de arromba, onde recebeu um diploma de honra ao mérito com direito a uma foto ao lado do Criador.
O importante era que Balbina, ainda acreditando que estava com os dias contados, curtia uma segunda Lua de Mel em Santos, com o maridão mais feliz do ano.Ela havia se transformado em uma nova mulher, mais viva do que nunca, renascendo para os prazeres da vida. Que seja infinito enquanto dure, e que por muito tempo perdure!

Silmara Retti

domingo, 21 de junho de 2009

O dilema de Wadinho





Enquanto Wadinho era um bem sucedido motorista de táxi de uma empresa internacional, toda a mulherada se derretia aos seus pés, digo, aos seus sapatos, que brilhavam como uma panela nova.
Ele não perdoava nem a própria tia e era famoso por sua fama de bonitão, mas Wadinho era muito bem casado e somente os íntimos conheciam a sua verdadeira mulher; a mãe dedicada de seus cinco meninos, a boa cozinheira de toda a família e a poderosa DONA DO MOCÓ, que muitos pensavam que era muda porque não tinha boca pra nada.Dona Quitéria sabia de cor sua escala de trabalho, começando no tanque, virando a direita de cara com a pia, rapidamente sem perder o gingado feminino que deixava Wadinho louco!
E aí se não deixasse...Ficava de bico a semana toda sem dar o dinheirinho da feira ou da quitanda.
A vizinhança toda não se conformava com a escravidão de dona Quitéria, que permitia tanto abuso em troca de alguns trocados que iam direto para as contas atrasadas, fazendo com que costurasse para fora também aos domingos sem atrapalhar a jornada diária da casa.
Wadinho nunca tinha hora certa para voltar e era presença constante no dominó, no futebol, no bingo e na gafieira.Em qualquer lugar que fosse bem longe da família.
Sempre alegre com os amigos, prestativo e camarada, mas em casa era um cricri, deixando todo mundo louco de raiva.
E enquanto isto dona Quitéria pagava o maior mico!
Só que aquela noite não passou das dez; abriu a porta de fininho, murcho e com a voz mansa como um miado, chamou a mulher de benzão, já abraçado ao seu cangote com lágrimas de sangue.Pois bem, diante daquele babado todo, dona Quitéria só conseguiu entender uma coisa: Wadinho estava desempregado!
O homem contou mil histórias da carochinha, dizendo que havia sido vítima da inveja alheia.
Sentia-se doente, cheio de dores e com um medo terrível da VINGANÇA DE QUITÉRIA.
E ela preparou um cházinho, tentando lhe agradar, só de olho naquele malandro.
Nos primeiros dias o boneco procurava emprego em anúncios de jornal.Na verdade queria um que fosse a altura do seu charme, da sua sensibilidade e do seu desempenho cultural.
Queria algo que lhe deixasse com tempo livre para a academia de musculação, a corrida na praia e o jogo de taco com os amigos.Uma coisinha leve, para que não envelhecesse dando um duro!
E como não encontrava nada de interessante, se dizia deprimido e desencantado da vida.Porém logo alugou o sofá do canto da sala e um pijaminha de tergal, assistindo á todos os desenhos do mundo.
Dona Quitéria sentia dó daquele traste, se acabando na máquina de costura simplesmente para que não lhe faltasse o mamão para o seu intestino preso, o iogurte desnatado e o churrasquinho no final de semana.
Mas, espera um pouco...Algo parecia errado, com sabor de sacanagem!Ela começou a olhar tudo aquilo com outros olhos; a reparar o quanto estava gordo e corado e seus dias de mordomia chegaram ao fim.
Agora ela era a dona da Mufunfa e não teve perdão.Na própria máquina de costura fez um uniforme caprichado e Wadinho, que desde rapaz era motorista de táxi foi promovido, com menção honrosa, a piloto de fogão !

Silmara Retti

O crime imperfeito





Tudo começou quando Lurdinha se esparramou no chão da varanda com uma caneca de suco geladinho, só de olho no movimento ao redor .De repente uma formiga foi se aproximando e a menina só não cultucou suas perninhas com um palito de fósforo porque conseguiu escapar desesperadamente, como que se quisesse muito viver .Ficaram se encarando por instantes e ela tinha uma voz chorosa e cheia de mágoa:
- Por que tanta maldade, garota? Também sou proprietária desta casa e mereço todo o respeito do mundo .Moro no açucareiro lá da pia há muito tempo e nunca lhe agredi , apesar de perdemos vizinhos e amigos diariamente vítimas da violência humana .Eu mesma já fiquei viúva várias vezes e ontem perdi um companheiro afogado na xícara de chá . Era um formigo honesto e trabalhador, dedicado à família .Ele saiu logo cedo para o sustento do próprio lar quando de repente foi atacado por uma mão gorda. Ela grudou o pescoço de Aluísio e deu um safanão em suas costelas raquíticas .Justo ele que sofria de bico de papagaio desde criancinha! A nossa equipe de resgate se mobilizou toda só para capturar o vitimado, porém seu corpinho flácido foi mergulhado várias vezes dentro da xícara fervendo e a criminosa ainda teve a audácia de pinicar o defunto com a ponta da unha ...
Os humanos se julgam superiores em toda a sua inteligência “racional”, porém ainda massacram companheiros pequenos que também possuem o mesmo direito de viver ! Deveriam ter mais respeito com seus semelhantes, de qualquer forma e tamanho, pois são obras do mesmo Pai , que os criou neste caminho evolutivo .Não queremos optar pela violência . Precisamos que a violência opte pelo nosso corpo transbordando paz .
Lurdinha abaixou os olhos muito envergonhada . Quantas vezes teria violado a natureza simplesmente por se sentir dona dela ou por se achar poderosa o bastante para ter o direito de destruir o que na verdade jamais saberia criar !
-Se os humanos soubessem respeitar as pequeninas coisas que os cercam, conseguiriam valorizar muito mais as grandiosidades que os interiorizam .- sorriu a formiga, num gesto carinhoso.
E a partir daquele dia Lurdinha passou a absorver para si os ensinamentos daquela simples formiga falante , enxergando com os olhos da alma a perfeição da Natureza Divina,pois nós humanos não somos donos do mundo; apenas fazemos parte de um ciclo que se chama VIDA .

Silmara Retti

O companheiro raivoso


















Divino aguardava o movimento do feriado nacional ainda de molho no sofá da sala, mostrando toda aquela banha para quem quisesse ver, totalmente conformado com sua própria desventura, ou seja ;
- “Bater um rango” na casa da sogra.
- Dormir até criar calos.
- Aturar a patroa suspirando no seu cangote.Isto sim era um porre!
Que feriado, que nada.Para ele ia ser mais um final de semana enjaulado no lar doce lar, que na verdade era pior que o Pavilhão 09 do Carandirú .
Os amigos da firma iam para o futebol, para a pescaria ou para a festinha na sauna.Ninguém era otário feito Divino que teria que se conformar com a companhia calorosa de Bertina , a esposa mais querida do mundo!
Ela estava feliz ao lado do fofo, cantarolando alto todas as músicas da novela das oito e fazendo boquinha de “tigresa marota”, com seus cinqüenta e oito anos muito bem ralados.E manda charme!
- Este feriadão vai ser ótimo para discutirmos a relação, Baby! Você vai adorar a minha companhia...Foi caprichar, meu lindo!
Rebola daqui, remexe dali e Divino não levantava nem o cílio superior.
Bertina sentiu-se arrasada com tamanha indiferença e pôs-se a chorar, despencando das tamancas .
Foi assim que o bonitão teve a idéia do século, matutando uma maneira de mandar Bertina passear.Se ela ficasse bem longe dali, poderia beber todas no bar do Zico, cair de cara no forró do Brás, totalmente leve e solto!
Seria esta a forma de mostrar para os amigos que nenhuma mulher lhe colocaria no cabresto.
Era só passar uma saliva na mulher para depois sair pra galera!Contou até três, colocando o seu plano na ativa.Encarou a vítima pasmo de susto;
- Meu Deus, como você esta esverdeada, feia e abatida!Precisa ir para a Santa Casa imediatamente!Talvez seja uma anemia corrosiva ou uma doença em estado terminal...
Não deixou nem que a pobrezinha falasse nadica de nada. Mais que depressa apanhou o conjunto de malas para viagem, arrumando todas as roupas de Bertina, com lágrimas nos olhos.
- A sua saúde em primeiro lugar, meu bem!
E com uma bagagem suficiente para as quatro estações do ano, a infeliz deu entrada no hospital sem saber de nada.
ALA CINCO - QUARTO DOIS.
-Ora, tudo começa assim: sem nenhum sintoma, sem queixas, para depois se transformar em uma epidemia fulminante.- dizia com ar de preocupado.
Ela fingia sorrir, chorando.Ele fingia chorar, sorrindo!
Finalmente a sós! Acompanhou a enferma até o seu alojamento, carregando todas as malas nas costas e para bancar o herói fez questão de pegar Bertina no colo, numa entrada triunfal até o seu leito de morte. Pensava com seus botões:
- Segura, pião! Jogo, sexo, mulheres...De-lí-cia!
Enquanto desfilava pelo corredor do hospital com aquela mala sem alça no muque, revirava os olhinhos na maior felicidade. Ufa,era demais para o seu pobre coração!
Já estava pronto para o ataque, usando sua cueca de oncinha .Quanta euforia!
Jamais pensou que fosse se divertir tanto assim, deixando Bertina a quilômetros de distância. Só que de repente foi sentindo uma queimação por dentro...
- Eram os hormônios que estavam em festa.- pensou.
A boca secou...
- Era a sede da cachaça, é claro. – resmungou.
Uma tontura esquisita e BUM!Caiu para trás feito um pé de quiabo murcho.Tudo isto deveria ser de emoção em saber que logo estaria solto no mundo, mas quando ia levantar a bandeira em sinal de liberdade, desmunhecou na cama primeiro que a própria doente.
Corre daqui e socorre dali!Divino teve um piripaque fulminante, tirando o lugar da própria Bertina, que precisou ocupar o leito ao lado.
- Que maridão bacana! Isto sim é lealdade.
Ela parecia feliz da vida em dividir com Divino todos os momentos difíceis, principalmente naquele feriado a dois, separados apenas por um tubo de oxigênio.
Bertina nunca pensou que poderia contar com tamanha devoção assim, expressa num ombro amigo e acima de tudo um companheiro fiel que soube estar presente naquele suplício de dor.E Divino era um paciente impaciente, enjoado que chorava e gemia o tempo inteiro...Mas não era de dor.Era de raiva!

SILMARA RETTI -

O choro de Judas


Durante muitos anos ouvia um choro forte vindo de um buraco escuro e lá no fundo tinha alguém que se confinava com a sua própria consciência , pedindo a ajuda de qualquer um que pudesse aliviar tamanha dor .A dor do arrependimento.Nunca falou o motivo , mas o mundo inteiro sabia do seu deslize e da sua traição .O seu nome era apenas Judas .
Na verdade nem queria se lembrar do resto da história .
Muitas pessoas foram até ele atirando uma pedra .
Outras zombavam de sua fraqueza , desejando que continuasse por muito tempo ainda dentro daquele buraco .
Mas no seu desespero desconsolado, queria apenas uma dose daquele remédio que cura todas as chagas: uma dose de perdão!
Algumas mulheres foram até ele, esbofeteando -lhe o rosto .
- Traidor !
Outras lhe rogavam mil pragas e assim muitos dias se passaram. Anos! Parecia que ninguém conseguiria lhe perdoar .Que ninguém pedia por ele em suas orações ...
Judas conhecia dentro da alma o peso de sua própria condenação e já era o bastante para ser eternamente infeliz .
Foi desleal com um Amigo, o melhor de todos .Foi inconseqüente e traidor . O tempo não voltaria atrás .
Então só lhe restava chorar bem alto, tentando aliviar o seu coração .
Até que numa noite Judas estendeu o braço para fora do buraco escuro e quis alcançar o brilho das estrelas .Desta vez não se lamentava, somente.Queria que sua mão tocasse a luz que vinha do Alto .
De repente um vulto iluminado chegou mais perto, acalentou a sua pele, percorrendo o seu corpo num abraço amigo .
Ele sentiu-se envergonhado em receber tanto carinho .Talvez não merecesse um pouco de amor ...
Só que ao tentar se esconder novamente , a luz se tornou cada vez mais forte , envolvendo a sua alma .
Ele chorava como um menino assustado .
Com certeza aquele conforto seria de alguém que não sabia quem era ele, querendo apenas lhe acalentar em seu colo fraterno .
Fechou os olhos agradecido e tentou lhe contar a sua verdadeira História ; a mais triste de todas!
Mas uma voz sussurrou ao seu ouvido;
Que ficasse quieto, ali encolhido ...
Peito a peito, comovido .
Num momento de muita prece.
Pois o perdão os males esquece .
E um verdadeiro amigo estará presente,
em forma de anjo ou de luz .
Porque o seu nome, ah o seu nome era ...
Para Sempre, Mestre Jesus !

Silmara Retti

O catador de papel




Doutor Celsinho era um médico muito conhecido em sua cidade; bonito, rico e talentoso, mas com a estranha mania de catar qualquer papel diferente que encontrasse dando sopa por aí.
Poderia ser aquele papelzinho sujo, amarrotado num canto da calçada que mais que depressa, se abaixava sem cerimônia, fuçando rapidamente só para ler o que estava escrito.
Parecia louco e não conseguia disfarçar tamanha curiosidade, não sossegando enquanto não abrisse o embrulho, que ás vezes eram propagandas de cartomante, vidente ou mãe de santo.
Outras vezes eram anúncios mirabolantes de casas comerciais, lojas, açougue ou mercado.Lia cada um deles e depois enfiava no bolso da calça, levando para casa um bolo de baboseiras.
Dona Isabel queria morrer com sua “façanha”, achando mesmo que o marido já estava ficando caduco antes da hora:
- Mania de gente boba, isto sim!- dizia.
Mas relevava aquela esquisitice toda porque tinham dois filhos doentes e talvez fosse este o grande motivo que fazia de Doutor Celsinho um sujeito estranho. Paulo e Marcos já nasceram com problemas e passavam o tempo inteiro na cama, tomando remédios e tristes da vida!
Ninguém se conformava com a falta de saúde dos dois moleques, que tinham um pai rico e formado em medicina.
Só que doutor Celsinho conseguia curar de tudo, dor de estômago, enxaqueca, bebedeira, mau humor...
Apenas não conseguia curar a própria sina, sendo que do portão de casa para dentro era um simples pai indefeso diante da moléstia dos filhos.
Numa manhã chuvosa, resolveu dar um passeio até o parque para distrair um pouco as idéias, refletindo sobre sua vida.Ele caminhou alguns passos, encontrando um papel sujo de lama, todo amassado e caído no meio da calçada.
Ah, tava na mão! Precisava saber o que estava escrito.E se fosse uma carta de amor, um trecho de algum poema ou uma história engraçada? Rapidamente sentou-se no banco da praça na maior curiosidade.
Era um anúncio sem graça, escrito a mão mesmo por uma letra toda borrada por tinta escura.Anúncio de um catador de papel “de verdade”, que vivia de jornal, garrafa vazia, sarrafo de madeira Doutor Celsinho achou que podia ajudar o tal catador de papel e fez um “apanhado” em tudo o que tinha no fundo do quintal, colocando dentro do seu carro importado, com o endereço dentro da carteira.
Sua casa ficava num bairro distante dali, sem esgoto, sem água encanada e sem luz elétrica.
Já estava escurecendo quando seu Guilherme o recebeu com um olhar ressabiado e pediu que entrasse para negociar.Doutor Celsinho logo se apresentou, reparando nos cômodos de madeira, na mesa comida por cupim, no guarda-louça feito por caixotes e nas duas camas no cantinho da parede.
Então o pobre homem morava ali e decerto tinha filhos também, porque alguns brinquedos velhos estavam amontoados dentro de um saco de pano.Seu Guilherme lhe explicou comovido que Paulinho e Marcos eram a sua maior riqueza e ajudavam a catar papel junto com o pai.
Doutor Celsinho quase morreu do coração ao ouvir aqueles nomes tão conhecidos por ele. Tremeu por dentro, lembrando também dos seus moleques que tinham o mesmo nome e idade.
Que coincidência, meu Deus! Só que os filhos de seu Guilherme corriam de lá para cá, cheios de saúde, rindo alto de suas próprias travessuras.Podiam pular, empinar pipa e jogar futebol.Talvez não comessem queijos, frutas da época, doces requintados, mas eram livres e felizes.
Doutor Celsinho abraçou aquele catador de papel, com os olhos inundados d’água. Trocaria a sua mansão, o seu dinheiro e todo seu prestigio por um pedacinho do céu, onde o endereço era exatamente o barraco velho do Seu Guilherme.Ele sim era um homem feliz, muito rico e nem sabia!

Silmara Retti

O candidato do POVO



Samuca sempre foi um picareta metido a bacana, cheio de ladainha e muito papo furado.Era um picareta de cinco estrelas e de luxo! Não era qualquer um, daqueles que a gente reconhece a olho nu, não senhor.
Ele se fazia de morto, inventando doenças de todo o tipo e tamanho só para não por a mão na massa e mostrar trabalho.Coitadinho, até que tentava, mas tinha um problema que arriava o caboclo na cama; uma peste que consumia todo o seu corpo, a sua alma, a sua saúde, numa anemia corrosiva que se chamava: preguiça! Desde de moleque não queria nada com nada.
Não movia uma palha pra ninguém e ainda se dizia o “queridinho” da mamãe.Dona Dirce estava no puro osso de tanto trabalhar por um lugar ao sol e fazia o impossível para que o dodóizinho fosse rei em seu próprio mundo! Roupas da moda, tênis importado e um carrinho especial que transformou Samuca num tipinho mimado e egoísta, com uma pose violenta que parecia um artista de novela.Sentia vergonha da casa simples que morava, da sua história humilde feita por gente que se descabelava apenas para lhe ver feliz.
Mas aquele moço engomado não herdou a simplicidade de ninguém e botava a maior panca se vangloriando das coisas que nunca teve, inventando o que nunca aconteceu e se passando por uma pessoa que jamais foi.E você pensa que Dona DIRCE não conhecia os tererês do filho malaco? Claro que enxergava a profundidade das suas mentiras, mas disfarçava para ela mesma, dizendo que um dia o seu menininho danado acordaria diferente.Quase um santo!
Se passasse o dia todo de molho no sofá, só comendo e bebendo, era porque estava fraquinho e precisava se revigorar.Quando passava a noite na gandaia, era para fortalecer os músculos.
E como o mundo inteiro já estava metendo a boca na folga de SAMUCA, Dona Dirce começou a ficar preocupada com sua fama de mala sem alça e resolveu arrumar um bico para o filhote.Um serviço leve e que não lhe arrancasse o couro.Mas, o quê, meu Deus?
- Vendedor, professor, instrutor...Delegado, advogado, candidato...
Candidato do quê? Do povo, claro!
E deste momento em diante a vida de Samuca mudou.Ele fez questão de voltar as próprias raízes, andando com chinelos de dedo e uma calça furada na bunda como que se fosse um Zé Ninguém .
Um andarilho do bem! Um servo do trabalhador!
Que trabalhador, que nada.Ele mesmo nunca tinha martelado um prego e agora se dizia o candidato.
Acabaria com a seca, com a fome...Construiria prédios populares com um lugarzinho privativo aonde o pobre poderia se sentir mais rico, como uma churrasqueira comunitária. E este pacote de presente maravilhoso só tinha um preço.Uma bagatela: o voto.
E daí por diante Samuca era presença marcante nos almoços de domingo, churrasco de batizado e jogo de futebol.Ninguém agüentava mais ver o seu sorriso pregado 24 horas no ar, na sua cara de bobo, sempre a caça de mais um eleitor.Acho que nunca bateu tanta perna, tomou tanto cafezinho e contou tanta piada!
Mas a maior de todas era a sua cara de pau, rindo para os outros, e dos outros.Só que o povo já estava vacinado contra esta doença corrosiva que impregna a nossa sociedade.Contra a hipocrisia daqueles que ainda acham que um voto, ou seja, uma confiança, se vende em troco de favores pessoais; uma telha velha, um bloco ou um saco de cimentos.O único objetivo da verdadeira razão política é o trabalho que flui de dentro da decência e abrange á todos.
Não é um trabalho apenas da boca para fora, porque ninguém precisa mais de tanto blábláblá.De idéias que têm interesses próprios e benefícios pessoais.
O povo não precisa mais desses falsos trabalhadores que não pensam no bem estar comum da comunidade.E Samuca pulou, esperneou, prometeu mundos e fundos achando que era o Rei do Mocó e quando chegou a sua vez de mandar bronca no pedaço que decepção!
O seu nome só foi lembrado como um filme velho, sem ibope e com certeza, que não vale a pena ver de novo!
Silmara Retti

A grande final



Numa cidadezinha do interior existia um bandido destemido, ousado e muito petulante que desde moleque já gostava de matar passarinho com o bodoque. Roubava os varais de roupa e as galinhas da vizinhança na maior cara de pau. Nunca gostou de trabalhar, preferindo viver as custas de uma pobre tia costureira.
Quando Gogó sentava pracinha da igreja para jogar truco o chão tremia porque ele apostava até a roupa do corpo e não saia dali enquanto não acabasse com o seu último tostão furado.
Já perdeu a bicicleta, o par de tênis e penhorou a geladeira que era do padrasto.A sua fama difamada cresceu depois que declarava, a com boca cheia de orgulho, que havia virado um Matador de Aluguel e para formar uma equipe de trabalho conceituada convidou seus primos Pedro e Tadeu.
Agora Gogó só andava de terninho cintilante pra cima e pra baixo com o pescoço cheio de badulaques dourados.A cidade tremia todas as vezes que desfilavam pela avenida principal provocando as pessoas com uma espingarda velha.
Gogó não parou por ai! Queria muito mais e começou a fazer justiça com as próprias mãos, comparecendo depois nos velórios com toda a sua ironia, rindo do acontecido.E ninguém podia fazer nada de puro medo!
No meio da noite mandava a pobre viúva embora, ordenando que Pedro e Tadeu tocassem sanfona no maior forró do mundo! Arrumava uma mesinha no canto da sala e clareava o dia jogando truco do lado do falecido, que não podia nem reclamar do barulho!
Mas um dia o inesperado aconteceu...
Gogó já tinha bebido bastante e cismou que o primo Tadeu estava roubando no jogo.Achou que tivesse escondido uma carta dentro da manga da camisa e armou um TERERÊ danado! Não quis nem conversa fiada e como se achava o mais poderoso do lugar, resolveu dar um fim na esperteza de Tadeu, lhe apagando com um tiro certeiro.
Quanta frieza!A cidade inteira compareceu ao velório de Tadeu, inclusive Gogó, que era o mais elegante de todos.
Ele fez questão de colocar seu terno de linho modelo inverno, ordenando que Pedro tocasse na sanfona, as músicas preferidas do defunto.
Enquanto consumia um big charuto importado, Gogó foi até o falecido pedindo a atenção de todos para o seu discurso emocionado.Falou horrores do primo Tadeu, se escancarando de tanto rir.
Ninguém ousava se mexer.Estavam todos pasmos de pavor.
Ainda cheio de ironia ordenou que o falecido lhe servisse uma bebida quente, porque o forró já estava para começar.
- Pobre Tadeu, não está se sentindo muito bem hoje.Não consegue nem se levantar do lugar! – e babava de tanto rir.
De repente o defunto sorri, um pouco pálido e mexe a boquinha, se desculpando:
- Infelizmente esta noite eu não posso me cansar porque já tenho outro compromisso, querido. Vou jogar truco no cemitério da cidade, e você Gogó, foi convidado para ser o meu parceiro!
Nisso Gogó não acreditou.Quase engoliu o charuto de uma só vez, dando piruetas no ar. Caiu duro ali mesmo e morreu de puro susto, com as cartas nas mãos.As pessoas pulavam de alegria, soltando fogos de artifício e pagando mil promessas.A algazarra foi tanta que o prefeito precisou decretar feriado municipal e desta vez o forró foi muito mais animado, porque toda a cidade estava em festa, comemorando a Grande final do Campeonato de Truco.


Silmara Retti

quarta-feira, 17 de junho de 2009

O REI


Conta a lenda que existe um Rei muito poderoso, dono exclusivo de todas as coisas do Universo, mas mesmo assim é humilde, misericordioso de bom coração .O melhor do mundo !
Isto é o que diz aqueles que O conhecem de perto .
Já aqueles que não O conhecem tão bem , costumam ficar distantes e com muito medo de se aproximar .
Dizem até que Ele é misterioso, bravo e castigador .
Que nada ! Este Rei é um Pai Coruja com seus filhos e está sempre de braços abertos, num abraço gostoso , envolvidos em seu colo protetor .
Na verdade Ele possuía terras e mares, com a natureza toda fluindo de suas mãos .Então resolveu povoar cada canto, distribuindo a sua família pelo mundo .Para ela deu o do bom e do melhor !
Porém o Rei é um ser justo, que espera pacientemente que seus filhos cresçam por mérito próprio, aprendendo com as dificuldades e superando os limites .
Somente assim conquistariam com sabedoria o seu lugar ao sol , suando a camisa nesta escola evolutiva que se chama VIDA .
Alguns gostaram, fazendo a festa . Já outros ficaram ressabiados, reclamando de tudo ...do sol, da chuva e do vento .Queriam mesmo viver de brisa !
Então o Rei fez o possível e o impossível para agradar a filharada ingrata, fazendo com que tivessem maiores oportunidades de progresso .
Para que não ficassem bitolados em um mesmo lugar, fez questão que conhecessem o mundo, colocando uma estação de trem para que pudessem ir e vir, numa viagem constante para o infinito .
Mesmo assim apareceu o time da oposição que logo se revoltou com a idéia de ter que deixar provisoriamente suas raízes .Foi uma lamúria total !
Aqueles que chegavam já vinham com a corda toda, mas o que partiam se desesperavam à toa, como que se fossem morrer de verdade ...
Que falta de fé! Este Rei não mata ninguém porque no seu Universo de Amor tudo é vida, aprendizado e evolução .Era só uma viagem, nada mais !
Seus filhos eram passageiros de primeira classe nesta estação que os levariam à outros lugares .
Foi exatamente assim que aconteceu com Ana , quando de repente sentiu que seu irmão Antônio já estava com a passagem na mão, esperando apenas o dia do embarque .Ela quase enlouqueceu , sem perceber que seria bom para Antônio curtir o Universo Exterior .
Ana se negou á compreender, adoecendo de tristeza .
Após a partida do irmão, jurou vingança contra o Rei e desta forma nunca mais foi feliz .
Ninguém conseguia fazer com que ela enxergasse a viagem de Antônio como um passeio comum, pois todos um dia também irão partir .
É a Lei da Evolução! Só que Ana preferia enxergar com os olhos do egoísmo e com isto seu irmão não conseguia aproveitar os momentos de liberdade no espaço porque estava penalizado com o sofrimento da infeliz .
Desta maneira Antônio foi até o Rei e de peito aberto lhe contou sobre o seu destino .
Após muito tempo de conversa, lhe foi sugerido que mandasse uma carta de conforto , incentivando Ana à ocupar o seu tempo com outros irmãos que estavam mais próximos esperando apenas um gesto de carinho .
Quanta alegria ! Foi assim que Ana conseguiu transformar alguns instantes de separação num reencontro diário, enxergando em cada criança o rosto querido de Antônio lhe sorrindo de novo, com a certeza de um breve regresso !


Silmara Retti

O fã número um



Quando Joelma encarava aquele palhaço de pijamas se despreguiçando todo no sofá, tinha vontade de lhe dar uma vassourada no cangote e depois sumir do mapa para sempre.Onde tava com a cabeça em se casar com um "thothoba" do tipo de Kikinho, que só servia para lhe servir? E para fazer uma graça, ele ainda areava uma panela daqui, encerava um assoalho dali e só não fazia a faxina geral porque andava de braço dado com a preguiça.
Na verdade Joelma reclamava de barriga cheia, e bem cheia, pelos quitutes de Kikinho, porque a casa tava um brinco e cheirava a limpeza.Ele não curtia ser a Escrava Isaura da casa, porém estava desempregado há dois anos e alguém tinha que sacudir a poeira e dar a volta por cima do tapete.Mesmo assim Joelma não dava um pingo de valor, achando que o rapaz não passava de um prego enferrujado.
Namorar, nem em sonho.Joelma trabalhava fora, vivia cansada e com dor de cabeça.Todos os dias ela fiscalizava o ambiente da porta da sala, reclamando que o seu sofá preferido estava totalmente ocupado por aquele vulgo “desocupado”.Não percebia que o jantar estava quentinho na mesa, o chão brilhava e tudo estava perfeitamente bem.
Após servir aquela comidinha gostosa, Kikinho ficava na sua cola, matraqueando o tempo todo:
- A máquina de lavar pifou de novo!A panela de pressão tava queimada e o preço da laranja subiu pela segunda vez no ano.
Santa chatice! Joelma queria mesmo tomar um banho bem quente e bum, ir direto pra cama.Não suportava mais o papo furado daquele homem cafona, que insistia em usar um avental todo sujo de ovo e molho de tomate.E que culpa tinha Kikinho se não arrumava um emprego fora de casa, hein? Se já havia passado dos quarenta e na banca da feira o verdureiro lhe chamava de titio?
Desde que foi mandado embora da firma morreu para o mundo e se sentia um farelo humano.Guardou seu terno de tergal no baú e fez de seu pijama velho um uniforme diário.
Ela fazia um sucesso danado com o seu programa no rádio e não tinha tempo para as lamúrias de Kikinho, que não passava de um tonto.E logo ele percebeu que precisava reconquistar urgentemente o coração endurecido de Joelma, antes que levasse um toco daqueles!
Então resolveu colocar para fora todo o seu sentimento, numa carta anônima, dizendo que era um homem apaixonado que fazia tudo pela mulher ingrata. Ela lia cada palavra com lágrima nos olhos, nem desconfiando que a pobre vítima daquela megera só tinha um nome: Kikinho! Um marido assim tão devoto e competente era um achado.- pensava –Ele passou a lhe escrever todos os dias e Joelma defendia a honra do pobre donzelo desamparado com unhas e dentes. Suspirava com seus botões, louquinha da silva para conhecer aquele príncipe encantado que dava o maior ibope ao programa.
Até que ela conseguiu marcar um encontro às escondidas com o ouvinte secreto e chegou em casa mais cedo, se embonecando toda para a famosa “reunião de negócios”.
Um negócio que o marido já não conhecia mais porque tinha falido!
Kikinho se fingia de morto, esparramado no sofá como uma sopa de minhoca.Disse que estava cansado e dormiria cedo, só pra variar.
- Sinto muito, não posso lhe acompanhar, querida.
Ela adorou, despedindo-se com um beijo na testa. Estava em cima da hora e após estacionar o carro numa quebrada desconhecida, aquele vulto se aproximou em câmera lenta.Olho no olho, com o peito quase explodindo de emoção.E que surpresa! Diante dela estava Kikinho, com o mesmo jeito apaixonado de sempre, lhe estendendo os braços num abraço, se apresentando como se fosse a primeira vez.
- Muito prazer, Kikinho.- sorriu, lhe estendendo a mão.
Joelma ao ver o marido quase morreu de vergonha; pelo descaso, pelo deslize e pela traição.
Era o mesmo homem que lhe preparava uma comidinha gostosa todos os dias, arrumava suas roupas no armário e que não se importava em viver atrás das cortinas para que pudesse brilhar. Ela lhe abraçou muito mais forte, enxugando as lágrimas para enxergar melhor a sua alma iluminada e lhe pediu perdão.
- Você é um homem de muito valor! – murmurou.
Kikinho valia ouro; era só conferir a quantidade, o conteúdo e principalmente a qualidade daquele homem, que mesmo no anonimato abria as cortinas do seu coração para que a sua musa pudesse brilhar cada vez mais, como uma estrela cintilante.

Silmara Retti -

O espelho trincado



Paulinho sentia saudade do pai porque ele era um homem muito ocupado e todas às vezes que acordava bem cedinho para ir ao colégio seu Pedro ainda dormia esparramado no chão da sala.
Era um sono pesado que lhe deixava de molho o dia inteiro, xingando qualquer um que fizesse um barulho diferente ou lhe perturbasse as idéias.Dizia um palavrão cabeludo e não queria ver a luz do sol no rosto.E dona Janice ouvia tudo calada, no mais puro silêncio apenas para não incomodar o Santo Poderoso.
Afinal de contas ele era o Poderoso, o Rei do Trovão e sabia impor exatamente o seu lugar a golpe de unhas.Para quem não compreendesse o recado, um grito só bastava.
O menino Paulinho foi aprendendo, com o paizão, a conseguir as coisas no tapa e dentro da sua casa não havia espaço para os direitos de uma criança.Somente para os deveres:
- Deve permanecer calado até segunda ordem.
- Deve engolir a violência, o descaso, o poder, resumido numa única pessoa: seu Pedro, um pai que só conseguia oferecer àquelas crianças o seu exemplo de vida.Depois que anoitecia, ele assobiava uma cantiga boêmia, despedindo-se da molecada, com todo o cuidado para não amassar a camisa de linho.Era famoso por toda a vizinhança pelo seu jeito arrogante de ser.
Por mais que Dona Janice sofresse, não tinha coragem de mudar esta história.E a opressão é uma forma de violência que ela também agride e deixa marcas na alma!
Quando seu Pedro chegava de manhãzinha com o corpo cambaleando, fumava um cigarrinho já com o copo na mão, só pra relaxar.Será que precisariam engolir aquela tirania ridícula, que apenas humilha o seu semelhante? Mesmo que este semelhante seja um filho, porque se não pudermos ser bons para eles, não conseguiremos ser pra mais ninguém.
A escola da vida começa na nossa própria casa, com a nossa família.
Até que Dona Janice ficou sabendo sobre o A.A ( Alcoólatras Anônimos) e com muito medo de atiçar a sua ira, deixou apenas um bilhete com o endereço anotado a lápis.Nele escreveu que o alcoolismo é uma doença e que seu Pedro precisava buscar ajuda.Enquanto isto estaria morando com sua mãe, para que pudesse pensar melhor sobre o assunto.
No primeiro momento ele relutou; teve um chilique, socou a mesa, deu gargalhadas irônicas.Depois a fera foi amansando, dando lugar a um homem frágil e solitário.Não tinha mais ninguém naquela casa e apenas os retratos antigos poderiam ouvir suas lamentações.Passaram-se dias e noites.
Como estariam Janice, Paulinho, Dorotéia, Francisco? A vida parecia não ter mais sentido sem a sua família. Os amigos de bar continuavam marcando presença, mas tudo era diferente.Começou a ficar relaxado, com o cabelo sujo e a barba sem fazer.Emagreceu alguns quilos e caiu de boca no gargalho.
Chegou no fundo do poço.Sem mais nada, sem ninguém.
Enquanto isto Janice mantinha sua palavra: - Só volto se houver mudanças!
As amigas deram o maior apoio, admirando a determinação daquela mulher.
Apesar de morarem no mesmo bairro, nunca mais se viram.Dona Janice, Paulinho e seu Pedro apenas se reencontraram na sua primeira reunião no A.A, onde ele chegou meio tímido, mas quando enxergou a mulher e o filho sentadinhos num canto da sala, sentiu-se amparado.Ela sorriu e ele também.
- Que bom que voce veio, Janice!
- Que alegria te ver aqui, Pedro!
Com certeza seu Pedro conseguiria superar daquele obstáculo, porque a esperança lhe aguardava de braços abertos, somente para lhe mostrar um novo caminho.Não deveria ser fácil, mas estaria ao seu lado para lhe amparar, se tropeçasse, lhe ensinando que vale a pena acreditar na vida e principalmente em si mesmo.

Silmara Retti -

Uma mulher de Ouro





Tem mulher que por infelicidade do destino se casa com o bonitão e ainda leva de brinde o Kit Família, muito bem representado pelo Diretor Oficial: o cunhado.E não é um cunhado comum, não senhor. É daqueles que almoça e janta todos os dias e só levanta da cadeira para cair de boca...no fogão. Pede emprestado cigarro, vale-feira, vale-transporte e até vale tudo, já fazendo parte da mobília da casa porque sua cara de pau combina perfeitamente com a estante de peroba da sala.E uma não vive sem a outra; é a peroba e a cara.A cara e a peroba!
Dona Pina que o diga.Foi casada durante vinte anos com seu Coimbra, um Zé Munheca do caramba que não repartia nem o cabelo só de medo que alguém lhe tirasse o que tinha e o que não tinha.
Só que o destino é uma caixinha de surpresas e numa manhã de domingo enquanto voltava da banca de jornal do Didico, se derreteu na calçada, como um suco de quiabo.O infeliz teve um mal súbito fulminante ainda com o troco da revista espremido entre os dedos da mão.
Não teve quem conseguisse lhe arrancar as moedas, sendo que Dona Pina foi chamada às pressas para ajudar a socorrer o vitimado.
Pronto, por recomendações médicas, estava de molho.Agora seu Coimbra era o “dodóizinho” da casa, gemendo o tempo inteiro, de touca vermelha e enrolado num cobertor de lã.Santa paciência!
Dona Pina envelheceu cem anos! Ela lhe dava sopinha de legumes na boca, água fresca da bica no pote e doce de goiaba na colher do jeitinho que ele mais gostava! Enquanto seu Coimbra se recuperava aos poucos, Dona Pina se definhava rapidamente.Ela havia se transformado em sua enfermeira de Plantão, correndo pela casa a todo vapor com uma bandeja de inox equilibrada na própria cabeça.Lá tinha todos os remédios necessários, inclusive a lista das tarefas diárias: fazer a barba, cortar as unhas do pé, massagear as costas, contar histórias pra dormir...Tudo com muito carinho, é claro!Porém seu Coimbra não estava satisfeito e desconfiava de tamanha dedicação, achando até que tanto carinho assim tinha um nome: sua FORTUNA, muita bem enterrada no fundo do quintal, dentro de uma lata de marmelada.Na sua cabecinha de alho, pensava que Dona Pina estaria lhe aplicando um golpe daqueles, querendo mesmo que ele batesse as botas de uma vez.Só que seu Coimbra era um lunático e nem se deu conta que aquele dinheirinho minguado não valia nada diante do grande amor que Dona Pina lhe oferecia todos os dias e de graça.
Então,como não conseguia levantar da cama e muito desconfiado da própria mulher, mandou um convite para Bitello passar uma temporada com o casal.Na verdade ele queria que o seu irmão caçula lhe rastreasse todos os passos, contando detalhes secretos da sabichona.
Para Bitello foi um prato cheio e quase morreu de felicidade! Agora sim teria casa, comida e roupa lavada, no maior capricho do mundo.
Ele chegou, chegando. Exigiu até um quarto com vista pra rua, colchão ortopédico e travesseiro antialérgico.Após uma semana de hospedagem, já ficava de ceroula no portão da frente e tomava sol pelado em cima da laje.O cunhadão se sentia o Rei do Mocó, metendo o “pitaco” na vida íntima do casal e fazendo piadinhas picantes sobre o jeito sinistro que o irmão contava as moedinhas, uma por uma sem se dar conta que o seu verdadeiro tesouro chamava-se Dona Pina.
Seu Coimbra estava doente, de dentro para fora, e não conseguia perceber a grande mulher que possuía.Mas se ele estava cego, Bitello enxergava até demais.Aos poucos foi reparando melhor nas qualidades de Dona Pina, sempre prestativa e dedicada.
- Que potranca! – babava pelos cantos.- Essa tá no papo.
Ela era uma mulher honesta e não merecia tanta desconfiança assim. Nisso Bitello caiu de quatro e, totalmente apaixonado, rendeu-se aos seus encantos. Da noite para o dia, mudou completamente o seu jeito de ser.Arrumou um emprego no açougue do Binho, comprou roupas novas e passou a ajudar nas despesas da casa.E durante a madrugada ainda tinha energia de sobra para lhe servir um chazinho com bolachas.
Os dois já não disfarçavam mais nada, dando “bituquinhas” de amor embaixo das barbas de seu Coimbra. Ele aprovou rapidamente o romance, desde que pudesse continuar morando num quartinho no fundo do quintal, só para ficar mais próximo da latinha de marmelada.
Seu Coimbra já era um homem rico, muito mais rico do que imaginava, porém preferiu ficar com suas moedas antigas, guardadas durante anos no maior sigilo do mundo. Enquanto que Bitello enriqueceu de vez, porque tinha com ele a verdadeira fortuna daquela casa: o carinho de dona Pina.
Porque ela investia na produção, multiplicava os chamegos e fazia render a poupança como ninguém! Existem riquezas na vida que somente os sábios de alma conhecem, valorizam e desfrutam, fazendo delas um caminho próspero para a própria felicidade.

Silmara Retti