sábado, 6 de junho de 2009

De mulher pra mulher


Todas as noites antes de dormir meus filhos querem que eu conte uma história diferente e com fortes emoções, mas fica difícil coordenar as palavras se não consigo raciocinar direito com tantos remédios que me salgam a boca numa ânsia profunda... Ânsia de medo, de esperança e de vontade de viver!
Era o meu primeiro dia nesta luta contra o vírus HIV e nunca ninguém conseguirá expressar ou definir tamanha sensação. O meu corpo se coçava por inteiro, sentia náuseas, vômitos e não conseguia abrir os olhos.
O nome “Coquetel’’ posa de todas as formas, sem normas, indo direto ao meu preconceito mais íntimo, sentindo no peito que a Aids não era pra mim. E é esta história que eu gostaria de contar aos meus filhos e aos seus também, porém não posso porque sou uma dona de casa, mãe de família e tenho pessoas ao meu redor que ainda acreditam que isto é coisa de quem vive às margens da sociedade . Só que não sou imoral e jamais fui indecente.Simplesmente fui alguém que acreditou em outro alguém, pronta pra viver um romance sem censuras, sem proibições ... Sem camisinhas! E pra que preservativos se ele era tão especial e eu não conseguia enxergar com todos os defeitos e vícios?
Já nos conhecíamos a um bom tempo e começamos a viver momentos eternos que sempre terminavam no final do dia. Não tínhamos maldade e tudo era uma brincadeira inocente que me tocava a pele da alma numa busca de prazer e ser feliz!
As portas do meu coração se abriram para um novo amor e me encontrei totalmente absorvida por aquele amigo que talvez fosse apenas um inimigo.
Foram os olhares mais profundos e um toque de mãos que não tinha sentido, sem sentir, diferente, indefinido, sem razão de existir!
Éramos bonitos, saudáveis e risonhos.
Então me deixei conduzir pela paixão num caminho totalmente desconhecido por mim e pronto, estávamos namorando .
Vivíamos um romance como que se acabássemos de descobrir todas as delícias da vida com cheiro de chocolate quente, dropes, bala de goma, amendoim, pipoca lá da pracinha, doce de abóbora e paçóquinha.
Só que ele foi ficando estranho, cada vez mais violento e muitas vezes sumia no mundo, mas eu nem dava importância, pois pra mim a sua volta já era um bom motivo pra sorrir! Falava sobre drogas, sobre sua escravidão; procurando, fumando e cheirando. Vendia suas roupas, relógio e o tênis, mas eu sempre tapava os olhos.E que morresse amanhã, desde que me fizesse viver feliz hoje!
Enquanto eu ria muito por qualquer bobeira, ele ria também, sempre com os olhos avermelhados numa expressão perdida, procurando por outras emoções.
Acho que eu era pouco pra ele e por isso suplicava por mais; bebida, sexo e mais drogas!
A Aids não era assunto para nós dois e admitir a sua existência era como ter a convicção que nós éramos vulneráveis e mortais.Era abrir uma porta escancarada para todas as doenças sendo que a mais grave é a falta de informação, diálogo e respeito!
Quando eu percebi que estava grávida, recolheu-me para dentro de sua casa prometendo que um filho seria a passagem definitiva que o traria de volta a realidade.Passamos fome, frio, medo... Suas melhores roupas foram sumindo aos poucos e mesmo assim não conseguíamos pagar nossas contas! Ríamos das próprias desventuras, mas na verdade não tinha graça nenhuma, pois estávamos literalmente no escuro.
TUDO o que ele tocava se transformaria em pó e ficamos perdidos, porque um viciado não se mata sozinho.Ele leva consigo uma multidão de sonhos, esperança e vida.Eu estava sem forças e não me preocupava com mais nada.Os meus amigos se distanciavam de mim... Ele estava magro, abatido e sem rumo! Não fiz o pré-natal e nenhum tipo de exames de rotina por pensar que nada de ruim aconteceria justo comigo.
Então amanheceu diferente, sem o brilho do dia.Estava com febre e dores agudas, gritando ao mundo inteiro que precisava viver, só um pouquinho mais!
Agora nós tínhamos o nosso filho e ele merecia ter um pai que lhe fizesse sentir orgulho, que pudesse passear com ele de mãos dadas na praia com a certeza que era o melhor de todos; de cara limpa e peito aberto .Alguém que lhe desse segurança, educação, saúde e um futuro decente.
Não conseguia mais andar e nem abrir os sonhos.Ficou internado por um mês.Seus movimentos se atrofiaram e paralisou, cheio de medo da morte.Que ironia, já que se matou por tantas vezes enquanto envenenava o corpo, jurando que era poderoso assim...Mas que poder era este que lhe transformou num trapo humano, dependendo de todos para conseguir continuar?
A droga havia lhe derrotado e lhe restava somente a sua força interior.Aquela que nos faz levantar novamente.
Quando o médico me explicou que ele estava com Aids, consegui compreender que talvez fosse a sua última chance de renascer, porém longe do vírus da morte que se chama DROGA.
O que se passava pela minha cabeça? Passei horas sentada no sofá, sozinha no meio de tantos pensamentos.Morrer faz parte da vida.Se deixar morrer faz parte de um processo de auto-destruição e eu não merecia ser tratada assim, principalmente por mim mesma. Então percebi que só tinha dois caminhos:
- Ficar parada no tempo esperando qualquer infecção oportunista ou levantar a cabeça, sacudir a poeira e seguir em frente.Como tantas outras vezes, nesta vida!
Eu deveria ficar lúcida, equilibrada e segura nas minhas atitudes, porque éramos uma família e agora teríamos que ser companheiros!Comecei fazendo uma faxina dentro de mim, jogando fora qualquer sentimento que não contribuísse para esta luta.
Palavras como revolta, rancor e piedade não rimavam com saúde, nem ficar se questionando sobre culpas para depois sentir dó de si mesma... Assim tracei alguns pontos que deveriam ser a base sólida deste objetivo:
- Viver melhor, me preocupando não com a quantidade, mas com a qualidade de vida.
- Procurar recursos médicos e psicológicos
- Exigir respeito como qualquer outra pessoa que apenas deseja ser feliz!
- Confiar na ciência, deixando de lado crendices populares, porque atualmente a Aids não tem cura, porém temos medicamentos que melhoram a qualidade de vida e usar a informação séria como uma arma contra o preconceito. Preconceito, como assim?
Aquele sentimento que vem não sei de onde, sem razão e sem por que, mas que é capaz de afundar qualquer estrutura. E o mais devastador de todos é o que cultivamos durante anos, passando de pai para filho, como que se fosse uma tradição familiar.
- Aceitar ajuda, apoio...carinho!
Aprendi que não precisava padecer sozinha e o meu companheiro estaria comigo nesta busca pela vida. A sua família me apoiou, profissionais da saúde e pessoas estranhas que talvez não soubessem do nosso problema, mas se mostraram solidários. Enquanto eu ministrava um remédio e outro, disse que tínhamos muito que conversar... A nossa conversa começou com um sussurro, foi criando forma e aos poucos se desaguou num mar de lágrimas.E quando amanheceu estávamos abraçados num único objetivo: Viver em paz! Teríamos que aniquilar a mágoa e qualquer outro sentimento que sugerisse destruição, construindo defesas, vencendo obstáculos e fortalecendo o Amor. O legítimo amor, aquele que é capaz de dar a volta por cima e renascer !Somente assim estaríamos saudáveis de dentro para fora e o preconceito, a discórdia e a droga foram superados pela vontade de recomeçar. Reconstruímos novos valores juntos, vivendo intensamente cada vez mais todos os momentos como que se fossem os melhores... Renascemos de uma força capaz de nos proporcionar saúde e prosperidade, por que desejamos o próximo minuto, sempre!
Se nunca fiquei triste, magoada, com medo? Claro que sim, só que lá fora da minha janela tem um mundo pulsando com a certeza que nós somos vitoriosos nesta busca incansável pela vida. A aids é um desafio para a nossa própria fé interior e não acreditar que somos capazes de superar, significa desconfiarmos da nossa capacidade própria.
Nunca se subestime. Nunca se deixe vencer. Jamais se deixe morrer vítima do seu próprio desamor.
Sei que esta história é um exemplo de luta, coragem e perseverança, como tantas outras. Hoje o coquetel já faz parte do nosso dia-a-dia, assim como os exames de CD4 e Carga Viral para monitorarmos a doença.É importante levar o tratamento a sério para que possamos brincar com nossos filhos , comer pipoca com guaraná, dar boas gargalhadas e ser igual a qualquer outra pessoa que apenas deseja ser feliz, acreditando que o amor sempre vence, fortalece e faz nascer flores através das cinzas.Basta apenas semear.


SILMARA TORRES RETTI

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