sábado, 6 de junho de 2009

Começar de Novo


No cantinho do quarto de Alcione tinha uma cama de mola, estica e puxa, muito das mixurucas, onde dona Tita descansava o corpo após um dia de trabalho duro, ralando a estampa do vestido no tanque de roupa suja.Era uma mulher simples e calada em seu próprio mundo.
Criou Gerônimo, Marcos, Adélia e Alcione...Criou sonhos, caminhos e carinhos.O seu colo era do povo, dos filhos dos seus filhos e dos que viessem também querendo um dengo, um chamego e um cafuné gostoso que só dona Tita sabia dar. O mundo passou por suas mãos calejadas, transformando pó em ouro, lixo em luxo e retalhos em colchas.
Foi mãe e pai; amiga e inimiga, mas apenas quando precisava defender o pão de cada dia com unhas e dentes, espantando o monstro da fome que teimava, tinhoso, em aparecer na sua frente.Mulher simples, sofrida e matuta!
Dona Tita era alegre e conseguiu espremer da dor um bom motivo para viver cantarolando pela casa, enquanto deixava um cheirinho de limpeza no ar.
Nunca precisou ir á escola para aprender a multiplicar o grande amor que tinha dentro do peito.
Alcione, filha caçula, turrona feito ela mesma, achava tudo difícil demais nesta vida e reclamava a todo instante da má sorte que colava no seu pé, deixando que ficasse para titia, na maior desilusão do mundo.
Achava que dona Tita era a verdadeira culpada desta zica, dizendo que ela nunca havia lhe dado o conforto que uma moça da cidade tinha.Não conseguia enxergar na mãe uma pessoa que carregava muitos quilos de problemas na cabeça, mas sempre dando um jeitinho de acreditar num futuro melhor e batalhando bastante para que ele se realizasse.
- Ê mãe, ê mãe!- resmungava.
Talvez se não fosse tão xucra, bicho do mato, teria conseguido patrocinar uma vida “de gente” para todos eles e decerto já estaria casada com um homem fino e bem aventurado. Não se fazia de boa menina, não mesmo! Falava essas verdades na cara de dona Tita, com a voz cheia de rancor.E bem feito mesmo que precisasse dormir naquele mocó duro.Quem mandou não ter outras ambições na vida?
Mas dona Tita tinha a sua fé e entregava nas mãos de DEUS uma mala cheia de mágoas.Um dia, quem sabe, Alcione seria mãe também e assim aquele seu gênio danado de ruim se derreteria todo, transformando a raiva em amor.
Enquanto este dia não chegasse, o jeito era continuar dando um duro no tanque, no fogão e na casa dos outros, nem se lembrando que em agosto completaria 6O anos de idade.Não tinha tempo para essas bobeiras e o negócio mesmo era “fazer negócio”.Fazia e vendia.Botava preço e depois caia na rua, batendo de porta em porta.Quando começava a escurecer, sem ao menos ter se alimentado o suficiente, caia na cama mortinha da silva.
Então os anos foram passando e tudo continuava do mesmo jeitinho de sempre.Até que Alcione e os irmãos tiveram uma idéia de ouro: Dona Tita já estava velha, meio caduca e se esquecia fácil das coisas.Chegou a colocar sal no café e falava com as panelas. O melhor mesmo seria que fosse para um asilo.
Num almoço de domingo, no mês de agosto, bem pertinho do seu aniversário, se reuniram numa boa para explicar para dona Tita que ela estava fazendo hora extra naquela casa.Enquanto Gerônimo acariciava seus cabelos grisalhos, Adélia lhe cobria de beijos: - Mãe, vai ser melhor para todos!
Dona Tita não abriu a boca.Não quis chorar na frente de estranhos, porque na verdade não eram seus filhos; os seus meninos que estavam falando aquilo!Não era Gerônimo, não mesmo.Nem Marcos, nem a pequena Adélia.Esperou calada que lhe arrumassem os seus pertences.
Não tinha quase nada.Só tinha dois pares de sapatos e um vestidinho de missa.O resto era resto.O resto foi o que conquistou na vida; coragem, determinação e dignidade .Dona Tita passou a dividir, mais uma vez, o seu mundo. Agora com as amigas e companheiras de quarto.Não quis levar fotos de ninguém para não se lembrar do passado.
Então, entregou de novo a Deus uma outra mala repleta de lágrimas e muita FÉ.Durante sua vida inteira aprendeu que a nossa família está aqui e ali.
A casa ficou vazia sem dona Tita .Todos passaram dificuldades, pois não tinham mais a riqueza que ela ofertava, muitas vezes sem poder. Passaram, pela primeira vez na vida, fome de amor !
Depois de alguns meses sem dona Tita, perceberam que não podiam viver sem ela e foram lhe buscar.Todos eles estavam mortos de saudades e arrependimento por tamanha ingratidão.Quando chegaram no asilo, com os olhos inundados de lágrimas, ela não estava mais no quarto.Nunca foi mulher de se amuar em uma cama, derrotada.
Procuraram por todos os cantos e dona Tita estava no jardim, passeando com as novas amigas .Estava sorridente, muito mais bonita e feliz.Aproveitava os momentos de lazer para colocar a conversa em dia.
Agora tinha mais tempo para ouvir uma boa música, rabiscar algumas letrinhas, que logo se uniram formando palavras, e realizar antigos projetos.
- Viemos lhe buscar! – murmuraram, num abraço.
Dona TITA sorriu com o mesmo jeitinho de mãe amorosa e aconchegou cada um em seu colo, lhes contando uma história: havia chegado naquele abrigo com todos os seus sonhos demolidos em pó. Chorou muito de saudades da sua casa, da sua gente e da sua família.Sentiu medo, solidão e tristeza.Pensou até em adormecer, para sempre, tentando tirar da memória tamanha dor! Mas um dia percebeu que aquelas mulheres precisavam também de um pouco do seu carinho e resolveu acordar para a vida.Pertencia á uma outra família e ali era a sua nova casa.Então ela recebeu de braços abertos àqueles outros braços carentes.E os muros da incerteza foram dando lugar a uma ponte, aonde se iam e vinham, livremente, construindo, aos poucos, um mundo melhor.
Dona TITA estava recomeçando a viver e buscava outros desafios.Estava empenhada com um grupo de mulheres que promovia a alfabetização solidária.Ela tinha planos para o futuro.Queria trabalhar como voluntária naquele abrigo.Nunca foi de se deixar vencer pelo cansaço.Eles, melhor do que ninguém, sabia da sua vitalidade. Mágoa? Não tinha mais nenhuma.O tempo havia cicatrizado as feridas.Talvez fosse obra do destino ter ido para aquele lugar.Lá sentiu que ainda havia muito que se fazer.
- Mas, mãe...Precisamos de você.O que será de nós?
- Não, não precisam mais, pois aprenderam a caminhar sozinhos.São livres para buscar a própria felicidade.E sejam felizes! Eu estarei aqui e podem me visitar sempre que quiserem.Mandarei cartas, assim que puder.
- Como, mãe? Esqueceu-se que nunca foi á escola...- sorriram.
- Mas nunca é tarde para aprender.Neste lugar eu passei a ter mais tempo para mim; aprendi a ler e a escrever algumas palavras, graças ao empenho de outras companheiras.Aprendi também que a felicidade está em qualquer lugar; em qualquer canto e que precisamos apenas ter olhos para percebê-la e muita sabedoria para compreendê-la.
Dona TITA abraçou Adélia, Gerônimo, Marcos e Alcione. Não voltaria com eles.Agora ela estava muito ocupada com a sua paz interior, renovando as energias apenas para recomeçar.Sentia-se de bem com a vida!
Foi caminhando com o semblante sereno e num aceno distante, sorriu, com a certeza que havia feito o seu melhor.Quando estava longe, deixou uma lágrima teimosa escorrer livremente pelo rosto, abaixando os olhos para que ninguém percebesse que já sentia saudades, muitas saudades!

Silmara Retti -

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