quarta-feira, 10 de junho de 2009

Liberdade para todos


Miguelito foi criado desde pequeno por seu avô Zéca; um militar aposentado que seguia os rigores da Lei, pregando a Ordem e o Progresso, como muito bem entendesse.E o maior progresso que conhecia era a sua criação de animais domésticos: gato, cachorro e um bando de passarinhos engaiolados por todo o quintal.
Para o avô Zéca não existia nada mais valioso e querido do que o seu pássaro preto, que o alegrava todas as manhãs, enquanto fazia a barba na beira do tanque, só matutando um jeito de matar o tempo.
Apesar de que tempo ele tinha de sobra, para vender em pequenas prestações ou até mesmo a baciada.Poderia aguar as plantas, remexer no pomar ou dar uma volta de ônibus pelas ruas da cidade. Tinha todo o tempo do mundo para reclamar do vento, das injustiças sociais e falar de futebol ou política, batendo o cartão no forró do Romeu, onde sacudia o esqueleto no pagode da meia noite.
Miguelito já estava injuriado com tanta autoridade e ele sentia raiva daquela bicharada se arrastando pela casa, querendo ração, água, carinho. E lá ia o moleque com a cumbuca cheia de alpiste, limpando todas as gaiolas como se elas fossem o chão da própria sala.
Namorada não conseguia UMA sequer...Quem ficaria ao seu lado colhendo titica de cachorro, se o verdadeiro dono da coisa saia logo cedo para bater perna? Todos eram seus prisioneiros naquela casa, onde os muros pareciam muralhas com dois metros de altura e a voz tinhosa do avô fazia tremer até o alicerce!
Eram seus prisioneiros e apenas o pássaro preto ainda cantava, talvez de pura tristeza porque haviam lhe cegado para que não reconhecesse o caminho de volta.
- Como pode um homem experiente, de 70 anos, continuar aprisionando sonhos, desejos e a liberdade de alguém? -pensava Miguelito - Mesmo que seja um passarinho abobado que sentindo a dor da solidão, simplesmente canta.
Durante anos Miguelito dividiu as horas do seu dia com os amigos da casa; o cachorro, o gato e um bando de gaiolas enfileiradas por números, no canto da parede.
Conversava com eles explicando que era injusto viver desta forma.Cochichou no ouvido do cachorro, do gato e do canário- da- terra, que seriam muito mais felizes se tivessem o direito de ir e vir,como o próprio avô Zéca, ditador das ordens da semana, sumindo para a rua com suas perninhas de tico-tico .E as pessoas comentavam com as outras:
- Coitado, já vai o avozinho fazer a caminhada... - mal sabendo que aquele velhinho simplório implantava uma guerra de nervos do portão para dentro, sempre acima de qualquer suspeita.
Então Miguelito demorou a perceber que muita gente esbanja experiência, histórias de vida, idade avançada, mas nem sempre setenta anos de idade significam sabedoria. Porque os ignorantes nascem, crescem e envelhecem como todos nós; radicais em suas teorias e egoístas no comportamento.
O avô Zéca continuava o mesmo tirano de sempre, impondo o seu poder feito um militar do exército, disfarçado de “o bom velhinho”.
- Quem não te conhece, que te compra.- pensou Miguelito, já tramando um jeito de libertar os coitadinhos, se libertando também dos deveres de carcereiro.E aquela noite foi a tal.
Olhou o pássaro preto amuado no canto da gaiola e os outros passarinhos pulando de um poleiro ao outro.
- A opressão terminou!
Antes mesmo que o avô chegasse do bar, abriu a portinha de todas as gaiolas, pondo um fim na tristeza daqueles bichinhos indefesos.E num ato de coragem, chispando cada um e ordenando que fossem embora para bem longe, murmurou consigo mesmo:
- Liberdade, liberdade ainda que tardia!
Com um sorriso nos lábios, pode ver que se debatiam no ar, talvez por falta de costume ou por emoção de renascerem para a VIDA.
O último a ser libertado foi o pássaro preto que não desgrudou do seu ombro, como se pedisse para Miguelito ir com ele.
Não pensou duas vezes; abriu todas as portas e foi embora dali indo morar com seu tio Inácio.Deixou para trás todas as gaiolas vazias e o portão escancarado, numa alegria sem fim, porque a verdadeira libertação começa de dentro para fora, é para todos e só precisamos aprender a voar, ultrapassando obstáculos e superando limites.
Silmara Retti

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