terça-feira, 23 de junho de 2009

O menininho perdido

















Eu era um menininho comum, lambido e cheio de danadisse expressa num olhar maroto a procura de um pipa no céu .E nos meus sonhos de moleque era Rei no meu próprio mundo .
Fui dono de todas as estrelas, de todos os doces e brinquedos ...Mas ninguém sabia que quando fechava a porta do quarto os duendes se espreguiçavam das gavetas e riam comigo do modo engraçado que as pessoas usavam sapatos e relógios de pulso.
Fui crescendo e as minhas fantasias também ...
Ficamos grandes demais para esta realidade monótona e então decidi arrumar as malas carregando toda a minha ansiedade .Com quinze anos mudei-me por inteiro para este castelo imaginário onde poderia reinar sem limites .
Fui uma tristeza para minha mãe , uma decepção para o meu pai e no íntimo fui um fracasso para mim mesmo porque não conseguia encarar as pessoas , me escondendo do mundo atrás de um óculos escuro que usava para disfarçar o vermelhão dos olhos .
Não tinha amigos, não tinha saúde e não tinha paz! Minha perspectiva diária era construir aquela imagem de bandido somente para encobrir o mocinho medroso que estava ali dentro da minha alma .
Estava consumindo cada vez mais e o muito, já era pouco . Só conseguia sorrir quando estava dopado e insistia em parecer alegre, mesmo com um sorriso triste que desbotava com o efeito da DROGA .
As mãos tremiam e sentia vergonha daquele corpo frágil, pálido e quase morto .Mas todas as vezes que dizia NÃO ; a vontade, o vício e a fissura se transformavam dentro de mim e eu desejava desesperadamente aquele pacotinho que me fazia viajar para bem longe da fome, da miséria e da falta de Amor .
Quando conseguia abrir a porta do quarto, me derretia no assoalho com os olhos pairados no teto e não era mais o sujeito valente que falava grosso com os amigos, numa explosão eloqüente , causando um impacto na sociedade .Sentia medo de tudo e o maior deles era do embrulho miúdo que trazia colado no corpo como que se fosse uma segunda pele .Talvez um revestimento que encobrisse a minha covardia , a minha insegurança e a minha verdadeira personalidade .
Ali embrulhado estava o pó mágico que tinha o poder de me deixar poderoso para os outros, porém pequenino diante de mim mesmo .
Começou feito uma brincadeira e aos poucos foi se tornando uma obsessão e a maior delas era a minha paz interior que não se encontrava em nenhuma drágea .
Depois vinham as lágrimas coladas nos lábios trêmulos e eu jurava em voz alta que seria a última vez ...
Só que o meu corpo pedia mais ! E fazia de tudo para satisfazer aquela fome animalesca .Já não sentia vergonha em vender o tênis, o relógio, o sexo ...
A única luz que conseguia enxergar era o brilho do pó e ria , numa emoção fulminante que não durava o suficiente para que pudesse ser feliz .
Precisava usar , de qualquer modo, mesmo que um vácuo me absorvesse feito uma febre e tudo de lindo neste mundo era pouco para mim .
Meu pai me via, porém não me enxergava, preferindo fechar os olhos para não sofrer .E a minha dor ? Dentro de mim, tudo doía .
Entre nós havia um abismo que separava o meu mundo do seu e estávamos cada vez mais distantes !
Pai, se você não tivesse me omitido ...Se você tivesse me encarado de frente, teria visto a minha expressão de pavor .Somente assim perceberia que éramos todos inocentes nesta luta pela vida !
Durante anos acompanhou a minha agonia, fechando os olhos para não ver, sufocando o peito para não sentir e travando as mãos para não me abraçar junto ao seu corpo .Eu era apenas um menininho carente de colo que queria apenas trafegar pelas veias muita saúde , como qualquer outra criança da minha idade .
Porém o meu pai nunca ultrapassou as barreiras do preconceito, deixando-me cada vez mais sozinho .
Sei que sofria tanto quanto eu, chorava também do outro lado , mas não conseguia me erguer daquela sarjeta .
Assistia a tudo como que se fosse um filme e depois virava as costas, voltando para o seu mundo, simplesmente indignado .Apenas indignado, e nada mais! Eu tinha somente duas lembranças do meu pai ;
A primeira era daquela tarde ensolarada que lhe esperei durante horas no portão , guardando no bolso da bermuda a grande surpresa que iria lhe fazer : um dentinho de leite que havia caído logo cedo no travesseiro .Olha de lá, olha de cá e nada !
Que demora, meu pai não vinha .Corre pra cima e pra baixo .Cadê ? De repente lá vinha ele pela rua com sua carteira marrom debaixo do braço .O importante era a
sua carteira marrom, porque dentro dela estava guardado um calendário de uma loira pelada e a moedinha da sorte.Eu sentia saudades do meu pai porque era um homem muito ocupado e nunca teve tempo para mim .
- Pai, pai, me trouxe uma balinha ?
E lá vinha ele pela rua com sua carteira marrom, quase vazia se não fosse os documentos remendados com durex .
Caminhávamos juntos com grande dificuldade porque seus passos eram ligeiros, de gente importante .Silêncio.
Abriu o portão e entramos pelo corredor do quintal .
- Pai, hoje fui na venda sozinho e nem me perdi .E também tenho uma novidade ...meu dentinho caiu e agora já tenho uma janelinha . - dei risada .
Ele não riu .Ouviu e nem se importou .Deveria estar cansado, isto mesmo .Foi até o tanque de lavar roupa e molhou o rosto suado .A professora havia me dito sobre a violência e queria lhe explicar tudo o que já sabia .
- Pai, a violência machuca , principalmente o coração .
Pulei no seu colo, cantando .Sorriu rapidamente me colocando de novo no chão .Foi para a sala e ligou a TV no noticiário das oito , nervoso com o grande número de menores abandonados pela cidade .Só que eu era um deles ...e não sabia !
Aprendi com ele o verdadeiro sentido da palavra descaso; a violência contra a alma .
E a última lembrança que tive do meu pai foi quando me encontrou morto por overdose, naquela calçada opaca como a minha própria vida ,com as mãozinhas congeladas , numa prece :

- Á você que possui a alma embalada por sonhos coloridos e vícios eloqüentes ofereço meu abraço magnético .Á você , dono dos olhos mais profundos e do corpo trêmulo,ofereço um quilo do pó da vida e uma dose de paz .Porque a paz não se encontra em cápsulas ou em sorrisos dormentes daqueles que perambulam pelos becos a procura deles mesmos !Esqueça o desespero, o pranto, o medo e me abrace , pois toda a juventude lhe agita interiormente e a capacidade de se fazer guerreiro estrangulará qualquer vício, transformando a lágrima num grito de liberdade !
Silmara Torres Retti-

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